segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Viver sem queixume...

Meu caro Elias,
Ocorre-me de imediato a ideia da nossa «meia idade» quando se trata de celebrar um evento relevante da história de Portugal que corresponde a mais um dia de inactividade. Ou seja, temos os dias todos para nós e ser feriado ou não é pouco relevante nas rotinas diárias. De qualquer modo, os que laboram vêem nisso um pretexto para prolongar o fim-de-semana, como é o caso desta vez, pois o calendário ditou que se celebrasse a festa religiosa numa segunda-feira. Para os cristãos católicos romanos - e não é o nosso caso... - ontem, e hoje sê-lo também, por certo, para os mais marianos, foi um propício dia para a celebração religiosa mais distendida, sem pressa.
Pensei, amiúde, na questão que deixamos pendente e que se sintetiza numa frase da tua manuscrita missiva: «O amor que sentimos pelos que nos estão próximos dá-nos razão para continuar a viver sem queixume». Recordando o respectivo contexto, a questão cerne estava na evidência de que muitos cidadãos seniores vivem em solidão porque não têm quem os ame e esteja próximo deles. Não me refiro às notícias que fazem capa de jornal para confirmar que essa realidade social está definitivamente identificada - basta-me a própria experiência pessoal, adquirida nos últimos 6 anos, período que inclui o da crise pandémica de 2020/21. Vi os dois lados da «equação»: os que, para se sentirem mais vivos, mais úteis, mais realizados, se disponibilizaram para acompanhar quem estava mais só, sem amizades por perto, carentes de amor.
Na verdade, não é fácil conceber que, pessoas como nós, com saúde, sustento e família, se disponham a enfrentar a solidão dos outros, vivida com doenças graves, comummente de ordem mental, se não tiverem amor por elas... Sim, não será a simples vontade de se sentir útil que sustenta a disponibilidade das pessoas que vão acarinhar quem está tão carente dum abraço - é preciso amar de verdade para ser próximo dos que estão entregues a si próprios, às suas cogitações, aos seus permanentes queixumes. O amor parental, porém, nem sempre é visivel ou está mesmo ausente: os pais vão à sua vida e não querem saber dos filhos. Todavia, para a questão contextualizada, o que importa é a manifestação do amor filial, em primeira linha, na frente de combate à solidão e abandono dos mais idosos. Esse amor, muitas vezes, existe à distância, por razões fundamentadas: os filhos são eles próprios pais, às vezes já avós, e faltam-lhes recursos emocionais, anímicos, para enfrentar múltiplas situações que lhes exigem atenção; outras vezes, os filhos foram-se embora, à procura de melhores condições de vida, deixando para trás os seus pais que, entretanto, adoeceram, envelheceram, tiveram que ser retirados do seu próprio lar... Em situações tais, são outras manifestações de amor - solidariedade, vontade de mudar o paradigma social, manifestação de zelo religioso, simples humanidade? - que aportam socorro emocional, às vezes físico, cívico, moral, aos que vão deixando a vida, lentamente, queixando-se da sua sorte.
De certo concordas, também por experiência própria, que o mais «adequado» à realidade que se vive hodiernamente é «deixar andar», cada um por si, basta-nos o nosso mal, a nossa dor, a nossa tristeza, a nossa própria solidão... Legítimo como qualquer outro é o posicionamento defensivo de nos bastar o que nos acontece. É demais a proactividade em favor dos que, além das dores, estão ao abandono, num processo de desinteresse absoluto por si, pelo que acontece consigo, de desistência dos dias, das horas, dos minutos; ou daqueles que, já sem tino, deambulam - quando lhes é permitido, pois, muitas vezes, prendem-nos em «protecção de si próprios»... - dando sinal de que lhes não será de qualquer utilidade este ou aquele gesto, mesmo se inadmissível e lhe cause dor... A felicidade de muitos destes seres é que há quem, por amor ao semelhante, se voluntarie e se torne próximo para combater, objectivamente, a solidão de alguns, para acautelar que outros não desistam dos dias e, até, para vigiar os ambientes em que se presumem - às vezes, evidenciam-se - comportamentos lesivos dos mais básicos direitos dos que carecem de cuidados...
Um outro dia havemos de trocar impressões sobre as nossas andanças nestas batalhas pelo bem-estar dos que nos estão próximos, que nos ocuparam momentos importantes do nosso tempo e até nos aliviaram das causas que justificavam os nossos queixumes... Sim, no amor se alicerça o interesse em cuidar dos outros mas também o ânimo para levar a vida adiante, sem queixume...
É feriado, dá um passeio, vai ver o mar ou passear no parque, a pé ou de bicicleta. Era o que faria se não estivesse a atravessar um período menos bom, com a tensão arterial em baixo, que me dá, de repente, umas tonturas aborrecidas... Sem queixume, vou almoçar com os filhos e netos que estão próximos e nem a tensão arterial em baixo o impedirá!
Abraço, e cuida-te.
8 12 2025
José Manuel Martins
  




domingo, 7 de dezembro de 2025

EU CREIO...

Nem tudo o que sonhamos acontece... Devíamos saber isso e tê-lo presente sem hiatos na acção quotidiana! Do passado recuperamos a memória de que os valores culturais e o reconhecimento devido àqueles que no-los transmitem ou simplesmente no-los evidenciam nem sempre estão na «ordem do dia» nem na «agenda» dos que deviam servir de exemplo para o vulgo. Desilusão!? Sim, temos que admiti-lo.... Estamos a falar de quê, afinal? Da apresentação dum livro, numa escola teológica onde, em tese, estavam reunidas cerca de 200 pessoas potencialmente interessadas em conhecer o teor da obra e apoiar a iniciativa do seu autor. A obra EU CREIO é da autoria de Fernando Martinez, pastor evangélico, jornalista, escritor. O teor da obra, que é apenas o primeiro volume, trata de três grandes temas que, ao longo dos tempos e desde o primeiro século da Igreja Cristã, têm sido analisados pelos melhores pensadores da teologia e doutrina cristãs: Deus triuno (o Pai, o Filho, o Espírito Santo), a Igreja e as Escrituras. O autor escreveu magistralmente sobre todos esses assuntos durante cerca de 50 anos, mas agora apresenta-os numa obra estruturada, agrupando trabalhos dispersos e publicados em diferentes épocas. É uma oportunidade de reler, agora com a vantagem do pensamento do autor estar mais aprofundado e sistematizado, o que de facto foi lenitivo para muitas gerações, que, doutra forma, não acederiam ao ensino que lhe moldou o pensamento ou simplesmente as motivou à reflexão, ao aprofundamento, à compreensão mais cabal dos fundamentos estruturantes da teologia e doutrina cristãs.
Nós compreendemos que não tivessem participado da sessão da apresentação os colegas oficiais do culto, compreendemos até que não tivessem interesse os que por ali estavam para «matar o tempo». O que nós não compreendemos é que, numa Escola Teológica, que abre generosamente as portas a um dos que foi, durante tantos anos, seu mestre, ensinando várias disciplinas teológicas, os alunos não se interessem pelas iniciativas relacionadas com a divulgação do pensamento de um dos melhores cultores evangélico, figura cimeira das letras do pentecostalismo luso... Se pudéssemos opinar e se nos coubesse alguma responsabilidade na formação cultural dos futuros ministros do evangelho teríamos incluído nas tarefas académicas da semana a presenta dos alunos na sessão de apresentação de EU CREIO como acto formativo (exigiríamos até de cada aluno um relatório do que de relevante ali se passara para avaliação académica...).
Enfim, a aquisição dos valores culturais não está na prioridade do ensino, ao que parece, justificando-se muito mais «investir» tempo na cronologia inócua, na arrumação de papeis, na manutenção de equipamentos, na valorização do número de «estudantes» (estudantes que não sabem senão o que interessa para «passar» de ano e o suficiente para receber a «credenciação» que abre portas funcionais, mas não intelectuais...).
Estiveram na sessão apresentação os que quiseram testemunhar o seu apreço pelo percurso do pastor Fernando Martinez, desde a sua juventude, e que se reviram na acção que desenvolveu em prol dos jovens seus contemporâneos (deles inclusive, claro está!), o que foi prestigiante para eles. Avivaram-se-lhe as memórias quando, revertendo o tempo, ouviram evocar que o jovem Martinez dava importância à agregação dos mais novos à Igreja e à sua fidelidade a Cristo, animando a sua formação bíblica, teológica, doutrinária, nomeadamente através de perguntas e respostas que eram a «alma» dum concurso de saber e destreza bíblica de âmbito nacional, incluindo o que então se designava o Ultramar Português, cuja participação implica muitas leituras e manuseamento esclarecido das Escrituras. Ficaram certamente felizes porque diante deles, ali, naquela sala preparada para conferências e actividades de jaez cultural, estava o homem que sempre demonstrou ter uma paixão desmedida pelas Escrituras e pelo saber em geral, não para se enriquecer numa lógica egoísta mas para partilhar, com segurança, toda a revelação divina, o que aliás está patente em EU CREIO... Estiveram ainda presentes os que, de longa data, reconhecem que da lavra do autor, enquanto escritor, saíram obras de valor muito significativo que, ainda hoje, são (deviam ser...) referências para os mais jovens, em particular para os que se reclamam continuadores do legado dos pioneiros pentecostais em Portugal... Para nós, foi um privilégio colaborar na edição desta obra, que é, sem dúvida, necessária diante das notórias tendências pós-modernas que conduzem as pessoas inquietas, carentes de respostas para as suas solicitações espirituais, éticas, morais, intelectuais..., aos «pastos fáceis», aos «alimentos feitos na hora», ao evangelho cor-de-rosa. Bem se sabe que a orientação editorial da letras d'Ouro não é a de contrariar quaisquer tendências, aquelas ou outras, mas proporcionar aos leitores da Bíblia inconformados com explicações superficiais, que valorizam os temas centrais da fé cristã (o baptismo e as condições que devem ser preenchidas, a ceia do Senhor e as regras de participação, a Igreja e o seu papel no mundo como noiva de Cristo, o Espírito Santo e a acção que desenvolve na contemporaneidade, a escatologia e os eventos dos últimos tempos...), o que escreveu, ensinou e pregou o autor, Fernando Martinez. Não se contrariam essas e outras tendências por uma simples escolha de matriz editorial; o que se pretende é dar respostas a qualquer delas através da ampla divulgação de obras que dêem aos leitores pretexto para mais reiterada e afincadamente se apropriarem das Escrituras, entendendo-as na perspectiva do autor, que está clara como água cristalina: as gerações sucedem-se mas Bíblia, que é a palavra de Deus, permanece imutável e para sempre!

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

A memória e os factos d'hoje...

Elias, meu amigo, espero que tudo te vá bem. 
Depois daquela indisposição que te deixou inquieto, suponho que seguiste todos os conselhos médicos e, agora, já sabes que foi só um episódio menos bom. 
Estou feliz por ti.
Talvez porque nos «sujeitam» a intensa campanha política, por esta altura, e ainda se meteu no processo a doença do actual Presidente da República, ocorreu-me que faz hoje, precisamente, 45 anos que estivemos juntos e estudámos, durante umas duas ou três horas, na Biblioteca da Faculdade de Direito de Lisboa... Dir-me-ás: «Que memória é essa, agora? Quem se pode lembrar dum facto tão comum na nossa vida de estudantes...» Tens razão, não é normal. Quantas vezes puxamos pela cabeça para recordar acontecimentos mais recentes (onde passámos as férias de Verão há 3 anos, por exemplo...) e temos de nos servir dalgum suporte (agenda, fotografia, mensagem de correio electrónico...) para situar bem no tempo o que queremos recordar. 
Mas referi esse momento pois vivemos, actualmente, sob intensa propaganda da mão cheia de candidatos anunciados para concorrer ao lugar de Presidente da República. Não é que me lembre a matéria que estudámos juntos. Pode ter sido Direito da Família, Direito das Sucessões, quiçá Direitos Reais... Pode ter sido outra matéria qualquer que estivéssemos a rever para os primeiros textes do período.... Por qualquer razão, eu não assisti à aula das 19,30, nesse dia. Despedimo-nos e cada um foi para sua casa. Na altura, morávamos longe um do outro - tu, lá para a Pontinha, se estou certo, eu, na margem sul do Tejo, na Amora. Lá foste no autocarro do costume. Eu desci a alameda da Universidade e esperei o autocarro que me levaria ao Cais do Sodré. Estava na respectiva paragem, no Campo Grande, qaundo começaram a soar as sirenes das ambulâncias dos Bombeiros, que passavam a toda a brida, rumo ao aeroporto, por ali... Não deduzi senão que algo anormal acontecera, talvez um acidente de viação mais grave... Só soube, na TV, ainda a preto e branco, quando cheguei a casa, já os meus filhos dormiam, que se tinha despenhado, lá para Loures, um avião onde viajava o Primeiro-ministro, Sá Carneiro...
Nunca mais esqueci esse início de noite fria, na paragem do autocarro, no Campo Grande... Também porque, como agora, se discutia a eleição do Presidente da República, a cujo cargo concorria o incumbente Ramalho Eanes e o general Soares Carneiro, escolha pessoal de Sá Carneiro, a qual gerou enorme controvérsia (o candidato estava ligado ao anterior regime por via dos cargos que exercera e não tinha carisma...). Dias depois, no fim de semana, o General Ramalho Eanes ganhou a eleição, com mais de 50% dos votos...
O dia de hoje lembra-me também uma outra experiência nossa. Estou a escrever-te à noite, antes de dormir. Saí de casa, com a Marilinda, por volta das 13 h, já almoçados, para visitar uma das irmãs dela, que reside num Lar de Idosos. Fazemo-lo com alguma regularidade. Terminada a visita (há sempre necessidade de marcá-la com antecedência, e aceitar a duração estabelecida...), como tínhamos programado, fomos assistir à apresentação da obra o Roteiro Protestante Português* que se realizou na Biblioteca Nacional, ao Campo Grande. Vieram-me recordações das tardes em que nos encontrávamos - em 1975 ou 1976? - para ler o Kelsen e as suas Teoria Pura do Direito e Teoria Geral do Direito e do Estado. Tu lias uma, eu lia a outra, e fomos permutando as obras... Esses sessões de leitura vieram-me tão vivas à mente que, por segundos, perdi a noção do lugar em que estava e até algumas frases dos oradores (sabes, aqueles momentos mais calmos das exposições...). A sala não era a mesma, ficava no lado oposto, à direita de quem entra no edífico. Nós costumávamos ler na sala à esquerda, com luz natural e vistas para o Jardim do Campo Grande. Queríamos, nessa altura, em que se ensinavam teorias marxistas-leninistas sobre o Estado e o Direito, aprender por "cartilhas diferentes"... O nosso modo de dizer não ao marxismo-leninismo que nos impunham, como alunos... Lembro-me que desistimos! Não fomos capazes, nessa altura, de compreender o Kelsen... Estávamos crus para a Ciência Jurídica e para a Ciência Política e percebemos logo que não levaríamos o ano lectivo a bom porto com base nos conceitos de Kelsen... Passamos a estudar os «livrinhos» obrigatórios para não desmerecer o professor e, essencialmente, despachar a Cadeira... Sinceramente, não sei se esses livros (quer os do Kelsen, quer os de Marx ou Lenine, se lêm enquanto se cursa Direito...)
Cumprido o dever familiar e deleitado o espírito pelas prelecções dos oradores (amigos noutras lides...), lá fomos, em BUS, ver Lisboa, toda iluminada para as festividades do Natal. É pena que as bijuterias e comesainas imperem nos lugares destinados aos visitantes... Falta cultura. Faltam grupos de Gospel nas ruas, faltam cantorias natalícias ao vivo, faltam ... Falta o que quebraria este natálício espírito tão secular!
Boa noite e, quando leres esta carta, vê se as minhas memórias conferem com as tuas. Não vá estar a inventar... Releva as gralhas pois já não são horas para estar à escrita...
4/12/2025
José Manuel Martins
* Recomendo a leitura. Passa também a palavra a outros amigos teus.



 

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

O pão de cada dia...

É, pois, seguro que no meu senso de vida
não se vislumbram sinais de orgulho 
nem  de comportamentos comuns de arrogância...

É certo, quiçá por milagre,  que tenho o que basta
e escuso o esforço dos que buscam grandezas sem limite,
os querem muito as coisas do exagero...

E o meu descanso está no silêncio tranquilo
que suporto no ruído do nada que a muitos agrada
e fico tranquilo como a criança que mama o que quer...

Porque, no meu senso do que é viver, na pequenez do que sou,
expresso, submisso e satisfeito, à grandeza do Alto,
que não me falta tudo o que me basta - o pão de cada dia...

















 

 

A velhice é natural...

Meu caro Elias:

Recebi a tua missiva. Levantei-a, hoje, na caixa de correio. Pela data que lhe apuseste já estava depositada há uns dias. Cada vez recebo menos correspondência em suporte de papel e, muito menos, manuscrita...  Levou algum tempo a decifrá-la: a tua letra já tem alguma tremura, meu amigo. Para não denunciar essa «fraqueza» é que não te imito: vou escrevinhando no teclado. Conheço bem o teu argumento para continuar a usar caneta e papel (e vir a pé deixar a correspondência na minha caixa...): na nossa idade, quanto mais actividade física, melhor! E diversificar os movimentos é essencial. Tens toda a razão! Em boa verdade, algumas vezes também me socorro de lápis e papel para uns rascunhos prévios, um ou outro esboço do que pretendo, depois, passar a limpo. Tomara que todos os homens  da nossa idade te imitassem. Certamente manteriam a vitalidade da juventude que tu revelas!
Depois de decifrada a tua carta, concluo que a nossa conversa, no seguimento do que te escrevi a propósito de «Ser velho e maltratado», valeu a pena. 
Com efeito, afirmas tu, «a velhice é uma condição natural e deve ser aceite, compreendida e respeitada». Estamos de acordo! Aliás, debatemos isso e também as questões que se prendem com a qualidade com que deve ser vivida. Eu considero - embora não tenha merecido o teu apoio, mantenho isso - que a evolução da sociedade não vai ser no sentido de criar condições mais propícias para a dignificação da velhice. Por um lado, a ciência e a indústria farmacêutica investem em novas «substâncias activas» para prolongar a existência dos idosos; por outro, os governos nacionais, especialmente aqueles que se legitimam pelo voto, destinam cada vez mais dinheiro, arrecadado em impostos, para «favorecer» esse grupo etário. Parece que as «filosofias políticas» tidas mais de esquerda consideram que a forma de perpetuar o poder implica mantê-lo satisfeito. Se os idosos tiverem a percepção de que o «governo está a aumentar as reformas e pensões», isso favorece o voto nos incumbentes que se arrogam patronos dessa política de «não deixar os idosos para trás»... Mas há outra questão, a meu ver fundamental, que não augura «bom futuro» para os idosos: é a atitude das gerações mais novas. Sim, como afirmei, para elas os pais e avós já são um encargo (salvam-se todas as excepções, como é comum dizer-se...), e sê-lo-ão ainda mais no futuro: os novos velhos não terão tantas condições de auto-suficiência económica, os governos vão exigir mais impostos a quem trabalha para manter as políticas de «prolongamento da vida», os encargos com Lares, cuidados paliativos, outros apoios necessários recairão sobre as famílias, que não estão preparadas para os suportar... 
Ou seja, Elias, apesar de não concordarmos, a velhice do futuro vai ser muito sombria. Eu diria, se ainda tivesse de viver esse futuro - e olha que não é tão longínquo assim... - que «viver por viver», em solidão ou aprisionado, com outras pessoas nas mesmas condições, sem laços familiares fortes e vida activa com significado, deve ser muito penoso. Evidentemente, há os que se destacam pela sua robustez física, saúde mental e força anímica para, por si, levar a velhice adiante e morrer de morte natural durante o sono... Aliás, como me confessaste que querias terminar os teus dias! Nisso concordámos e apertámos as mãos...
Um dia destes, retomamos o assunto, até porque dizes no teu manuscrito que «o amor que sentimos pelos que nos estão próximos dá-nos razão para continuar a viver sem queixume»...
Recebe um abraço,
2 de Dezembro de 2025

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Ser velho e maltratado...

Meu caro Elias,

Suponho que estás a organizar mais uma das tuas viagens agora que estamos próximos do Natal e do fim do ano... A ti como a mim, custa tratar dessas coisas próprias de comprar lugares em aviões, estadias em hotel, marcação de mesa num ou noutro local de referência para uma refeição celebratória... É a vida, meu amigo, e a época do Natal, em particular para juntar famílias, exige esse esforço de organização e de "aritmética" para não esforçar o orçamento para além do razoável. Pois bem, concentra-te, faz as melhores escolhas e tem cuidado com essa "modernisse" de fazer pagamentos por via digital: é cómodo mas presta bem atenção e não dês mais informação além da necessária. Ouvimos todos os dias sobre fraudes, pessoas que ficaram sem as suas economias e os Bancos a «assobiar para o lado» , alegando que a responsabilidade pelo sucedido é dos clientes, que não foram cuidadosos... E faço menção disto apenas para sublinhar que o problema existe - cada vez há mais engenharia na fraude... - não porque ignore que actuas com eficiência e cuidado (louvo-te, tantas vezes, a atitude prudente diante desta maneira de viver tão moderna para a nossa idade...).

Mas eu venho à conversa contigo, antes que te ausentes (disseste-me que vais a Paris, novamente, para passar uns dias na cidade e depois celebrar o Natal em família, é isso?) para te dar notícia do tema que me ocupou, nas últimas semanas (nós já falamos, entretanto, mas sobre outros assuntos). Aquele desafio do "Nós e o direito de cada um", lembraste? Pois bem, decidi reler a Constituição da República e reparei nos dizeres do seu artigo 72º, cuja epígrafe é Terceira Idade. Há assunto mais falado, agora, que nos interesse tanto? Só se for a campanha em curso para escolher o sucessor do Prof. Marcelo, que tão cansadinho anda, a arrastar-se pelo comentário inócuo em tudo quanto é televisão e forum, nacional ou internacional... De facto, as notícias são tantas vezes sobre idosos (sabes em que idade se considera uma pessoa idosa? Olha, para a OMS, é-se "velho" aos 60; em várias políticas públicas, é-se "velho" aos 65 (idade que, agora, já é insuficiente para requerer a reforma...); e face à longevidade alcançada, em geral pode dizer-se que uma pessoa é idosa entre os 60 e os 74, ancião entre os 75 e os 90 (já viste o ancião saudável que me saíste?!) e, a partir deste último número, as pessoas alcançam a "extrema velhice"...

Só que fala-se desse grupo etário, a que ambos pertencemos, claro, para lhes aumentar as pensões (isso é importante, porque votam e escolhem quem lhes "paga" melhor...), para lhes dizer que os medicamentos são mais baratos ou até gratuitos, que há vacinas para todos, para não morrerem de gripe... Ah! Mas fala-se também dos Lares sem condições, em regra clandestinos mas não só, pessoas idosas em listas intermináveis para uma vaga onde ela existir, pessoas idosas com doenças mentais prisioneiras nesses ditos Lares, sem ver a luz do dia, dar um passeio, apanhar sol.. E também dos que não recebem a visita dos filhos... Triste, não é? Tu, Elias, tens saúde, família, estás confortável com a tua reforma. Mas conheces, como eu, tantos da nossa geração ou mais idosos, que vivem sós, em casas pouco confortáveis, abandonados pelos filhos, que andam ocupados na vida deles e na dos seus próprios filhos... 

Foi por este tema que andei, para dar pistas aos que comigo quisessem participar da reflexão sobre ele. Sendo aquela norma da CRP programática, ou seja, "determina as linhas orientadoras dos grandes objectivos que o Estado procura prosseguir, serve como indicador das políticas públicas a materializar, cuja efectivação depende das opções políticas do legislador e das condições socioeconómica e não cria, nem directa nem indirectamente, direitos em relação aos cidadão", queria saber - melhor, queria actualizar-me - o que entretanto tem sido feito pela dita Terceira Idade. Amigo, nem imaginas! Tem-se produzido abundantes leis, em particular para garantir melhores condições económicas e de segurança. Se quiseres, podes conferir, dando uma vista de olhos no Ebook do CEJ, denominado "O direito dos Mais Velhos". Está lá a relação das leis produzidas em vários domínios da vida no que se refere a este grupo etário tão numeroso. E podes ver ainda "A protecção da Pessoa Idosa (JUSGOV 2024, Escola de Direito da Universidade do Minho. Na internet encontras ambos os documentos com relativa facilidade. Podes "baixá-los" e ler quanto isso te interessar. 

Apesar disso, persistem as situações de isolamento, doença, solidão, pobreza e, especialmente, de maus-tratos... Sim, Elias, falamos disso antes, quando soubemos daquela nossa amiga que estava num Lar e foi enterrada sem assistência de nenhum dos seus familiares... e tinha três filhos e umas duas mãos-cheias de netos... Foi esse o tópico principal da minha preocupação com vista a partilhá-lo com os participantes do encontro "Nós e o direito de cada um". Recentemente, o Jornal Expresso publicou que «75% dos idosos com demência não saem à rua» e o Diário de Notícias que «Mais de 30% da violência doméstica registada pela PSP no primeiro semestre de 2025 é de filhos contra os pais (6 meses de 2025, 11 445 casos sendo 3 734 "filoparental" - a agressão mais frequente entre agrespor e vítima)» 

Para «ilustrar» o tema, usei um Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido recentemente, nos termos do qual foi condenada a 5 anos de prisão uma mulher, filha única, licenciada em psicologia, pela prática dos crimes de exposição ou abandono do progenitor de 86 anos, viúvo, doente, a viver sozinho, e de abuso de confiança, por ter usado os rendimentos dele sem consentimento e em proveito próprio. O caso sensibilizou-me (nos). E fomos unânimes no parecer de que a condenação em pena de prisão efectiva, como pretendia, em recurso, o MP., era justa... 

Evidentemente, as penas servem um interesse geral (visam criar na comunidade que não se fica sem castigo quanto nos portamos mal), mas já tenho dúvidas se o seu agravamento se justifica... Se uma filha se comportou como o Tribunal deu por provado, agiria do mesmo modo mesmo que a pena prevista em abstracto fosse mais elevada... É o que penso... Agora, provavelmente, justifica-se que situações desta natureza sejam valorizadas na definição da capacidade sucessória, retirando aos herdeiros legitimários, praticantes deste tipo de crime, o direito de aceder à herança deixada pelos progenitores que sofreram o dano. 

E não vou continuar, aqui, por escrito, esta conversa. Ver-nos-emos, proximamente, e falaremos com mais pormenor. No entanto, deixa-me dizer-te que os legisladores continuam a fazer Leis à medida que os problemas surgem nos Tribunais e, especialmente, nas televisões. Na AR, já estão em agendamento Projectos de Lei para reforçar a protecção dos idosos que sejam vítimas de crimes (há até iniciativas para aprovar um Código dos direitos do Idoso...) Enfim, a mim parece que a via legal, agora que se fala da alteração das Leis Laborais, devia ser utilizada para conferir condições aos trabalhadores para poderem visitar os pais nos Lares... Talvez, agora que se discute o OGE, deviam escolher-se medidas que permitisse às autarquias locais investir, em parcerias público-privadas com as IPSS, Igrejas, Associações de Idosos, por exemplo, em infra-estruturas de apoio, com recursos humanos qualificados para dar resposta aos idosos com demência, sem família... Mas também para criar condições para as próprias famílias poderem dar atenção aos seus idosos...

Abraço, com a estima de sempre

28 de Novembro de 2025


domingo, 16 de novembro de 2025

A «especificidade» do conhecimento...

 Elias, meu amigo, hoje, em público, relembrei a nossa troca de correspondência a propósito da interpelação «O que significa Cristo para ti?» ou, se bem me lembro, com esta formulação mais exacta: «Quem é Cristo para ti?»  Veio a talhe de foice numa breve alocução (só tinha 5 a 7 minutos para partilhar algo que pudesse enriquecer a reunião exclesial domingueira, matinal...), sem que constasse dos meus tópicos, previamente preparados. Mas não foi despropositada porque eu queria, na verdade, sublinhar o fulcro do desafio que Cristo dirigiu ao seu núcleo restrito de amigos, de quem queria ouvir o que sabiam sobre Ele além de tudo o que tinham ouvido do povo.

Conheces bem a interpelação e o que disseram os seus amigos sobre o que o povo sabia pelo que, agora, não vou repetir isso. Apenas lembrar que, no contexto do texto do Evangelho S. Mateus, capítulo 16, havia uma nítida intenção da parte de Cristo de virar a atenção dos discípulos para o que adiante aconteceria.

Eles não podiam, de facto, enxergar as vicissitudes do caminho a percorrer sem, primeiro, terem por certa essa verdade fundacional, dita por Pedro: «Tu és o Cristo...». Portanto, o contexto e o próprio diálogo referem-se «às virtudes» do conhecimento. O dos mestres religiosos, empírico, tinha proveito e a capacidade demostrada para entender os fenómenos da natureza e devia estar ao serviço do entendimento das coisas mais prosaicas da revelação profética, que tinham à mão. Deviam interrogar-se sobre a revelação profética, tirando dela proveito para ler os sinais dos tempos. Então, depois de tantos milagres observados, só acreditariam em Jesus se fizesse mais um «vindo do céu»?!

Parece evidente que, desse ensino, os discípulos deviam extrair a lição de que há muito a alcançar acerca do conhecimento das coisas de Deus, que exige esforço, aplicação para entender os sinais dos tempos que estão à frente dos olhos...  Faço aqui um parêntesis para que me digas se, hoje, nos tempos que correm, estamos a dedicar tempo e saberes para ter uma perspectiva correcta do que se está a passar no mundo no que concerne à implementação do reino de Deus. Penso que  estamos a ser levados na corrente daqueles que pensam que se há guerras, sempre as houve, se as alterações climáticas nos preocupam, sempre preocuparam, se o mal se manifesta em aberrações incomuns,  absurdas, inumanas, sempre se manifestou, se o tempo da revelação de Cristo nunca mais acontece, sempre foi tido por tardio... e o mais que possas imaginar...

Evidentemente, nem todo o conhecimento deve ser subscrito, sem mais. Justifica-se tomar cautela para, dentro do que é sabido, acessível, ao dispor, há o que está errado. Bem sei que não tenho necessidade de anotar que, para ti também, o «fermento» dos fariseus e saduceus não se compaginava com a mensagem nova, fresca, que Jesus ensinava aos seus seguidores. Podiam conhecer as doutrinas desses grupos mas elas não podiam «levedar» o ensino que Jesus lhes ministrava.

 A ideia de controlar - diria melhor, aferir - o que interessa dentro do muito que sabemos é fundamental para manter limpa a alma e não enfraquecer o espírito! O errado fazia o seu caminho e enleava o povo. O ensino novo devia manter distância e afirmar-se, à volta da figura do Mestre, com sinais, prodígios e maravilhas. O sinal do profeta Jonas era importantíssimo para aferir o tempo e os acontecimentos mas a multiplicação do pão e do peixe sobrepunha-se na dinâmica de implatação do reino novo, de que aqueles homens seriam embaixadores. Fora com o fermento daqueles mestres! O pão novo levedava no coração dos que vislumbravam nos actos de Jesus o miraculoso vindo do Céu.

Mas o Mestre queria ainda que soubessem mais do que aqueles doutores e que fossem além do empirismo popular que identificavam a sua acção com a «prática» de profetas passados (talvez até da de algum que tinham conhecido e agisse diferentemente dos saduceus e fariseus...). Queria que, face ao vivenciado até então - a sua vocação, o trabalho conjunto, as horas de aprendizagem, a participação nas acções miraculosas... - declarassem um «conhecimento mais específico». A demanda sobre quem Ele próprio era foi feita ao conjunto dos seguidores. Um, o mais ousado?, disse logo, em nome de todos (penso que não surpreendeu os demais...) que  era o Messias, o Filho de Deus... Estranho, muito estranho para aqueles homens, que tinham conhecimentro das doutrinas dos mestres religiosos e sabiam também o que o povo pensava, uma tal revelação. Afinal, em geral, a ideia de Deus era unitária... Mas ter Deus um Filho? Que estranho... Mas era a especificidade desse conhecimento declarado que lhes permitiria vislumbrar - e aceitar...- o horizonte futuro que o Mestre lhes queria revelar.

Pois é, Elias. E tu sabe-lo: o conhecimento do que está à frente dá muita vantagem ao que o possui! O que se espera não surpreende! E aqueles homens, para desempenhar a missão para que estavam a ser instruídos, precisavam mesmo de saber que, feita a descoberta da filiação divina do seu Mestre, que viria, de seguida, a espinhosa experiência de levar cada um a sua cruz, à semelhança daquele que os ensivava... Imagina se a igreja, fundada sobre a declaração de Pedro - subscrita por todos, estou certo - não pudesse contar com a entrega total daqueles homens! Mas o conhecimento é salvífico! Deu-lhe o poder de encarar o futuro sabendo que as coisas se passariam de determinada maneira... É verdade que, em determinados momentos, por esquecimento momentâneo, vacilaram. Mas isso é humano. Não vacilamos, hoje e agora, no nosso quotidiano, tantas e tantas vezes? Só o conhecimento comum sobre uma determinada realidade nos pode unir para o cumprimento de uma missão como aquela de que Cristo incumbiu os discípulos. O lamentável, Elias, é que não temos muitas certezas agora sobre o fundamento da fé dos que se identificam religiosamente com Cristo. Daí a imperiosidade de insistir na verificação de que a unidade assenta nessa declaração, vívida e actual, de que todos sabemos e declaramos que Jesus é o Messias, o Filho de Deus! Assumir isso é elementar, meu amigo, sob pena de, à mínima turbulência, o edífico construído se desmoronar, cada pedra para seu lado, por faltar o «cimento» que une: esse reconhecimento comum da divindade de Cristo!

Não me leves a mal por este arrazoado todo. Mas eu citei a nossa correspondência sobre o tema e não queria que soubesses por outrem que invoquei, como exemplo de relacionamento identitário, a nossa amizade.

Não te remetas ao silêncio! Não diremos tudo bem, não seremos, quiçá, unânimes em tudo, mas no que a este conhecimento específico diz respeito estamos juntos de coração.

Abraço-te, atº

 

16 de Novembro de 2025

 

PS: Ia omitindo uma outra referência que fiz e ela respeita-nos porque vivenciamos a situação juntos: Que este texto de Mateus 16:16 é-nos muito familiar há dezenas de anos. Lembraste agitação luandense com o empoderamento do tocoísmo, do sabatismo e das doutrinas dos propaladores da Torre de Vigia (o jeovanismo militante e o seu unitarismo) quando, em 1975, tudo valia? A coragem que demonstrámos em afirmar que o essenciall era manter a fidelidade a essa convicção da nossa juvenil afirmação: «Tu és o Cristo, o Filho de Deus».

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Angola em memórias...


Elias, meu amigo e irmão,

Os sonhos que ambos tivemos esboroaram-se, em certa medida, quando a força do slogane «O MPLA é o Povo e o Povo é o MPLA» se mostrou à evidência... Aparentemente, um simples «cartaz» de campanha política, a mensagem revelou-se premonitória do que sucederia: uns, os do povo mpla, contra todos os outros que não eram povo por não serem do mpla! Eu não sei e, provavelmente também não saberás, se essa mensagem já foi estudada, descobrindo as razões da sua eficácia instantânea na mobilização de todas as energias contidas para implantar um projecto totalitário, elitista, dirigido do exterior, em prol de interesses que não eram os de Portugal, dos angolanos, nascidos no território ou nele inseridos como terra sua também, nem dos «vários povos» que Angola tinha (e tem...). Esse slogane, associado ao outro, artificial, todavia conveniente, definidor das fronteiras, que afirmava «Angola: de Cabinda ao Cunene», constituíram, por si mesmos, o programa político que juntou armas, entregou-as às milícias em geral e às milicias das crianças em particular, concitou apoio internacional, que se traduziu em milhares de homens, em armas poderosas e mortíferas e dividiu quando dizia querer unir...

Isso é da história e já não conta muito para os que, 50 depois, se reúnem em salões de fausto para falar em nome de todas as conquistas que o «povo e o mpla» alcançaram. O certo, porém, é que os mortos que ficaram pelo caminho - os que acreditavam que uma só etnia era todo o povo, que as demais nem sequer podiam assumir as suas diferenças culturais, linguísticas, geográficas... - são marca indelével de que tais conquistas exigiram muito sangue inocente, quiça também comprometido com a ideia de que a pluralidade étnica podia conciliar-se no propósito de «um só país de muitas nações» (recordando as origens das várias parcelas populacionais do território é fácil concluir que constituíam diferentes nações, se preferires, diferentes povos...). Ignoro, hoje, o que se passa nesse capítulo: Também prevaleceu, sem margem para dúvida, o slogane de que, afinal, em Angola há tão somente um povo? O povo da linha Malange-Luanda, Luanda-Benguela impôs-se, definitivamente, e, agora, não há espaço para outros povos, outras línguas, outras culturas? Todos um só pelo slogane e pela língua... portuguesa? Como é também certo que a miséria, em geral, se multiplicou. Com os recursos que Angola teve e tem justifica-se a diáspora de angolanos jovens, que não conheceram a administração portuguesa, por várias partes do mundo, incluindo Portugal, onde muitos se sujeitam a viver abaixo do nível geral dos portugueses (bem sei que costumas dizer que os há também quem vêm gastar aqui o que lá «ganha» facilmente...).

A história é o que é e está documentada. Podia ter sido diferente porque ela é feita de decisões, de opções, da concretização de planos e programas humanos. E as circunstâncias gerais e particulares, ao tempo, contam decisivamente para a melhor compreensão - não justificação - do que aconteceu. Seguramente, matar quem discorda de nós não se justifica, mas, convenhamos, é o processo mais simples de impor o que se quer... O que importa, agora, é o contributo que damos para a conciliação, para o desenvolvimento das relações que interessam às nações, aos povos respectivos, às gentes que vêem na história traços de união que, há 50 anos, não foram considerados, foram até desprezados, vilipendiados.

Haverá, certamente, resquícios daqueles sloganes nos discursos de hoje, em Luanda. Vão ser audíveis pelos portugueses, representados ali ao mais alto nível. O mais importante é que, em consciência, se reconheça que 50 anos é pouco tempo na vida de um país, mas é bastante para se concretizar malfeitorias sem fim, lançar raízes de ódio que um dia frutificarão, infelizmente.

Pessoalmente, afloraremos, enquanto respirarmos, as nossas histórias comuns e de cada um sobre o que foi e poderia ter sido a vida dos povos que alguns quiseram que fosse apenas um (por domínio ou extermínio dos outros...).

Com amizade, estou aqui para te ouvir.

Abraço-te.

11 de Novembro de 2025

Dia da celebração dos 50 anos da independência de Angola.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

A prioridade é prevenir...

Caro Elias,

Não esperava tão célere reacção à missiva que te enderecei, precisamente ontem! Até parece que o assunto estava, para ti, «na ordem do dia»... O que sublinho foi tu teres escrito que «sai mais barato prevenir do que apagar» e dás o exemplo do custo da utilização de helicópteros nas tarefas de extinção dos incêndios florestais. 

Os números são mesmo impressionantes e fazem-nos pensar: E se em vez de alugar ou comprar essas máquinas, que voam, transportam e derramam água sobre as florestas em chamas e são tão reclamadas pelas populações aflitas, investíssemos os respectivos milhões de euros em formar bombeiros sapadores e proporcionar-lhes ferramentas de trabalho adequadas? E como bem observas, não são prioritários carros de combate a esmo, que todas as corporações querem no seu parque de estacionamento! Aliás, até nisso é possível gerir de forma eficiente, avaliando as necessidades do país e distribuindo os meios de acordo com as efectivas necessidades. Se quem pode comprar um veículo moderno o tem de deslocar centenas de quilómetros para lhe dar uso no ataque a um fogo florestal... Não faz sentido: os meios devem estar onde são necessários, o que exige visão global, pensamento estratégico, sentido de missão de quem tem o comando das operações!

Mas o essencial, parece-me, é a ênfase que dás à prevenção e aos «desperdício» que representa ter equipamentos sofisticados estacionados (a alternativa é tê-los, por aluguer, em determinadas épocas do ano, e pagar muito, muito mais por esse recurso...), a exigir permanentes cuidados de manutenção para estarem operacionais num determinado período do ano, sem definição muito precisa. Dás conta, e bem, dos helicópteros adquiridos para apagar fogos e, por falta de recursos para os manter operacionais, foram oferecidos para a guerra (parece que os ucranianos, face à escassez de equipamento militar para se defenderem, aproveitam tudo, até aparente sucata...). O respectivo custo teria sido bem aproveitado na vigilância, no cuidado das matas, florestas, públicas  privadas, criando e preservando riqueza, evitando as calamidades recorrentes, ou, seguramente, criando as condições para que qualquer incêndio deflagrado se tornasse «incontrolável»... Sim, ter meios para extinguir incêndios florestais é fundamental. Mas não é neles que deve estar a prioridade dos investimentos. Deve estar na prevenção...

Também acredito nisso!

Na minha missiva falei-te dos criminosos que ninguém controla, embora se conheça o respectivo perfil. Muito desse dinheiro, que usamos para despejar água, usando helicópteros, serviria para colmatar falhas de apoio social a estratos populacionais de onde emergem os incendiários... Sim, há respostas que não se dão porque as prioridades são outras. É mais fácil dizer que todos os meios estão no terreno para responder às necessidades das pessoas afectadas pelos incêndios - e dizê-lo em parangonas televisivas - , incluindo os mais modernos helicópteros do que ter que explicar, tim tim por tim, que o orçamento para a protecção civil foi gasto em trabalho de sapador, o ano inteiro, no apoio aos criadores de gado caprino, por exemplo, aos donos das matas e florestas, aos industriais do ramos com ligação directa á produçºao florestal, aos agricultores em geral, aos apicultores, às pessoas que vivem em áreas mais propensas à ocorrência de incêndios... É sempre mais difícil elevar o orçamento das juntas de freguesia para, em proximidade, colaborar nesse trabalho de prevenção pois se dirá que isso é «caciquismo político» ou outra coisa pejorativa do poder local... É sempre difícil explicar porque se apoia o turismo rural, a deslocação de pessoas para as áreas abandonadas para aí trabalharem, produzir , residir...

Vais ver, Elias, que o futuro no combate aos incêndios vai continuar a fazer-se com recurso a... helicópteros! Dá nas vistas, mesmo que, depois dos incêndios apagados, se vejam terras desoladas, negras, sem gente...

Bem sei que outras questões te suscitou a minha missiva Incêndios florestais sempre os tereis... Mas, por agora, não falemos mais de... incêndios.

Com a estima de sempre, abraço-te

10/10/2025



domingo, 9 de novembro de 2025

Incêndios florestais sempre os tereis...

 Meu caro Elias, saúde!

sábado, 8 de novembro de 2025

A que morre no fim...

Não se bate à porta da esperança

a sagrar dos pés 

feito o caminho das pedras

em dor e desespero.

Ali, à distância dum olhar,

está a curva donde se vislumbra 

a casa onde mora.

Entrando, cessa a deriva dos dias

aos quais faltou a certeza

de ser ela a última a morrer.


 8 de Nov. 2025

Sob o ruído das muitas águas...



quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Ler, ler, ler, não parar de ler...

Algures, 3 de Setembro de 2025
Meu caro Elias, saúde!
Nas nossas conversas fica sempre tanto por dizer...
Falávamos, há dias, sobre livros, o que lemos e não lemos.
Assumimos que ler é essencial para nos mantermos vivos. Sim, de certa maneira, não ler é como não comer...
É sabido que, hoje, é pouco provável encontrar quem coma tudo, melhor, quem coma de tudo. É mais isto porque é saudável, é mais aquilo por causa do planeta ou do rim, ou do estômago. Devemos ser selectivos mas não excluir nada por preconceito. Somos dos que têm boa boca e dos que lêem tudo! Conhecemo-nos e, portanto, não podemos encondê-lo.
O nosso contexto sócio-cultural, porventura, exigia-nos mais comedimento: não comer de tudo e não ler o que não tivesse recomendação prévia! Mas nós crescemos e o mundo mudou. Agimos sempre com grande sentido de responsabilidade mesmo quando comíamos o «impróprio» ou líamos o não recomendado. A liberdade que cultivámos deu-nos mundo e abriu-nos portas... Sabemos, assim, no que à leitura tange, que as proibições não são amigas da liberdade...
Lembras-te, ainda infantes, dos relatos fabulosos sobre a aventura de Jonas, o profeta, que não queria ir a Ninive por odiar muito os que tinham, na história, maltratado o seu povo? Deviam ser salvos porquê, os de lá, se eram tão execráveis na relação com os outros!? Dizia-se que até esfolavam os inimigos vivos... E Jonas não queria contribuir para que fossem salvos do castigo merecido...
Certamente, interessar-te-ás pela leitura de um livrinho que me chegou às mãos: A viagem de Jonas. As crónicas de um crónico desobediente. Vão as fotos das capas para veres melhor a apresentação da obra.
Evidentemente que já o li! Por causa dessa voracidade que me (nos) caracteriza como leitores... Não podemos ver uma folha de jornal perdida... Adiante!
Não vou revelar-te nada (aliás, Jonas - mito, real, autor... - não te é desconhecido...) da obra. Apenas sublinhar que a obra está escrita em «cânones» fora da caixa, como sói dizer-se, agora, pois deita mão a recursos que antanho não se usavam. Olha, por exemplo, recorrendo a figuras do cinema, da TV, da literatura não só para introduzir a narração como para «exemplificar» uma certa maneira de ser, de agir, de estar... Obviamente, o autor, que, pessoalmente, não conheço, é cinéfilo, espectador e leitor dessas fontes de lazer e saber. Isso é bom! Repito, como que parafraseando o dito paulino, importa ver e ler tudo, retendo o que interessa! Ou melhor, o que nos dá saúde! Na primeira impressão, Jonas é um de nós pois há muitos exemplos por aí de fugitivos, a quem se pede que faça isto ou aquilo e fazem coisa diferente por terem melhores razões (e mesmo quando fazem o que lhes é pedido, fazem-no sempre em função do que para eles é o bom motivo!)
Se não tivéssemos vivido tanto, por certo encontraríamos o profeta - no local acessível, na eternidade...- caracterizado pelos recursos do nosso tempo: a história bíblica, o seu contexto socio-politico- religioso... Assim, tão seniores somos!, ainda o vamos confundir com um homem da tela ou da literatura moderna... Mas isso tem piada! Não sei é se os leitores, jovens, naturalmente, ganham em conhecer Jonas com a ajuda das artes cénicas ou meramente literárias... Talvez o peixe grande só possa ser ficcionado e o poder que removeu o homem do seu ventre atribuido a um criativo, roteirista ou novelista...
Vais dar o tempo por bem empregue! Depois, podes ilustrar os teus conhecimentos bíblicos arriscando novos recursos, aqueles a que não tiveste acesso e que, agora, estão no dedilhar de um teclado, e animando as tertúlias com os teus netos... Jonas pode tornar-se uma leitura «dos novos tempos» (para nós, que lemos, e retemos o melhor, esta Viagem de Jonas é proveitosa, apesar de não acrescentar o que aprendemos; para os mais jovens, potenciais alvos da obra, a coisa pode ser problemática: é que, ao que parece, eles não lêem...)
PS: Somos críticos literários, à nossa maneira, e muito sensíveis à ortografia, à sintaxe... O editor da obra podia ter sido mais cuidadoso e a revisão mais exigente. Sei que se trata dum lapso, mas logo na primeira página de texto vais encontrar «viagem» e «viajem»... Não ligues, sê condescendente!
E até breve. Se quiseres, dá-me, depois, a impressão da tua leitura.
Sempre amigo,




quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Curtos são os dias da amizade...

Os dias da amizade
segura, que ampara,
duram sem (a) idade
que, por vezes, separa...
O começo é sempre nada,
troca de gestos pequenos,
tempo da alma fadada
que dá tudo, não faz por menos...
Verdejam à força própria,
pode ao redor parecer pouco,
horas, dias de agonia,
do tempo que fazem louco...
Finar-se-ão, docemente,
pois há um fim para tudo,
um amargo, certamente,
fica o tempo tão mudo...
Virão depois muitos dias
de lembranças sempre vivas
nas papilas sensíveis, macias,
das amizades perdidas...
😉
Só ao correr da pena, sem critério métrico ou pretensão poética, querendo dar voz ao fruto que lutou para singrar e nos deixou uma lembrança de docura sem fim...
A amizade exige entrega para deixar, um dia, uma lembrança de...doçura!



sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

54 anos depois...

Caro Elias,

Não dispensamos as recordações, em particular das situações da vida que deixaram marca indelével.

Temos recordado tantas, tuas e minhas, vá lá, coisas que nos entrelaçam e alimentam a amizade que nos dá à vontade para todas as conversas.

Pois bem, fez-se hoje uma luzinha na minha cabeça, depois de termos conversado tanto sobre os lugares por onde passamos e nos marcaram.

Não me ocorreu, durante a conversa, que faz hoje, precisamente, 54 anos que, de malas aviadas, regressei a Luanda.

Bem sei que és mestre nas coisas referentes às linhas férreas que se construiram em Angola, em particular aquela que, vindo da costa atlântica, se embranhava nas profundezas do território, até à fronteira, a leste. Eu via os comboios passar em Nova Lisboa, mas a história da linha interessava-te mais do que a mim... Eu ficava por ali a vê-los passar, carregados de mercadorias e gente... Tu sabias tudo acerca de cada composição que, no sentido da fronteira ou do mar, parava na capital de Norton de Matos.

Mas sobre comboios estamos conversados porque me falta cultura. Mas a memória do resto, em Nova Lisboa, ainda está viva e disso falamos tanto... 

Uma ocasião, estando aborrecido com o «clima» social na capital, decidi mudar de ares e trabalho. Pequei na minha Lambretta e, zás, quase um dia inteiro, fiz-me à estrada para Nova Lisboa. Estamos no fim de Julho de 1970. Tu chegaste depois e conheces os pormenores da aventura. Não te maço, repetindo-os. Lá na pensão, que escolheste por sugestão minha - afinal, foi lá que me alojei uma semana após ter posto os pés na cidade... - falámos tantas vezes da ousadia que foi percorrer aqueles 600 quilómetros sem preparação prévia... Nem bagagem, nem sítio onde dormir... Tudo o que os 20 anos justificavam de aventura e irresponsabilidade!

7 Meses depois, foi diferente! O avião e a carreira de transporte de passageiros e mercadorias facilitaram muito o retorno... Tu ficaste para cumprir a tua recruta e especialidade militar. Eu regressei antes que o serviço militar me apanhasse. Apanhou-me em Julho de 1971, mas nos meses de Março e Julho vivi das economias dos meses de trabalho na capital do planalto e foi tudo muito bom! Ainda não tinha apreciado, como nesses meses, o burburinho luandense...

Tu bem querias frui-lo, mas em Nova Lisboa podias continuar a contar comboios, a sublinhar no teu diário as particularidades das merdacorias e as muitas cores de que se vestiam aquelas gentes que vinham da fronteira para ver o... mar!

Deixei nesse dia 28 de Fevereiro de 1971 parte de mim no café com vista para o jardim, onde o ribombar dos trovões nos dias tempestade me tiravam da atenção do que estava a estudar...  Nem os apitos do comboio que descia se ouviam, mas tu sabias que o ribombar dos trovões era passageiro e logo mais subiria outro para abraçar a fronteira, que nem sabíamos onde ficava...

E nunca mais voltamos e tu, em dado dia, disseste-me que os comboios tinham parado e, portanto, não voltarias ao planalto...

E agora que os comboios voltaram a circular, regressavas?

Fica para a conversa que a breve trecho teremos.

 

 

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Sorte da caturra...



A propósito duma caturra...

Um dia, um homem, que vivia só, sucumbiu à mesa de um café, no aeroporto de Lisboa.
Biólogo, músico, um intelectual...
Foi enterrado sem que se soubesse se tinha ou não família.
Soube-se, mais tarde, que, quando estava em casa (aliás, um antro de sujidade, desde que a cabeça dele se destrambelhou...), tinha a companhia de duas aves...
O senhorio despejou a casa, por falta de pagamento da renda mensal, por meio de arrombamento. Lá estavam o Solicitador de Execução, o serralheiro, o Sub-chefe da polícia da esquadra local, com dois agentes... (não sabiam se o inquilino estava dentro de casa; podia haver resistência... ihihih). No meio do lixo, das centenas de livros (muitas dezenas novos, nunca lidos...) de filosofia, psicologia, ciências sociais em geral, religião (judaísmo, islamismo, cristianismo...), dos móveis, do cofre, das jóias... ainda havia vida. Não, não era o dono da casa, que tinha morrido e não se sabia, nem mesmo os que tomavam, agora, a casa de «assalto» tinha ideia disso. Esse vivera sozinho e estava enterrado... Havia uma «arara» viva, cujas companheira não resistira, provavelmente à fome, à sede ou à...saudade! Foram abandonadas pelo dono que saíra e não voltara... Foi logo «transportada para o Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade»... Sorte dela porque aquela equipa de «arrobamento» tinha sensibilidade. Sorte dela porque o respectivo director se empenhou, pessoalmente, em recuperá-la e garantir-lhe bem estar... Sorte dela porque, 6 meses após a morte do seu dono, os familiares (herdeiros!) se interessaram por ela e a primeira coisa que fizeram foi recuperá-la para ser companhia lá em casa...
Afinal não era uma ARARA. Tratava-se duma ave «vulgarmente conhecida por caturra», da espécie «Nymphicus hollandius».
E pronto, estava garantido o futuro da CATURRA como «dama de companhia»... Mas o dono morreu sozinho, sem cuidados, ao abandono... Até na morte lhe faltaram os amigos, conhecidos e os que seriam, legalmente, seus herdeiros...
Sorte da Caturra! Há crianças que deixamos morrer...

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Quem é Cristo para ti...



Caro Elias, quem é Cristo para ti?


Não tenho tido ânimo para responder às várias mensagens que me mandaste, entretanto. Algumas vieram por meios telemáticos e «perderam-se» no amontoado em que se transformam as caixas de correspondência. Releva, por favor.

Hoje, detive-me na leitura do texto biblico seguinte: S. Mateus captílo 16: 1-16. Fiquessei-me, em particular no verso 16, onde se lê «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.» Em versões mais próximas do linguajar moderno lê-se mais exactamente: «Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo».

Vendo o texto, parece que se pode dividir em três partes, as quais me servirão de referência para a exposição, ou seja: a primeira (v.1-4) refere-se à preocupação do que é imediato, espetacular e garante visibilidade aos protagonistas que têm conhecimento imenso sobre tudo mas não sobre o essencial da vida; a segunta (v.5-12) refere-se à necessidade de ter cautela para não deixar que o brilho do conhecimento dos religiosos, políticos e outros sábios anule a experiência do miraculoso, pois podem ocorrer milagres tão essenciaia à fé como o do profeta Jonas; a terceira (v.13-16) evidencia que o mais importante é ter noção daquilo em que acreditamos para viver uma vida nova, diferente.

Sabes, com bastante frequência, os textos base dos sermões que vamos escutando são mais amiúde escolhidos no Antigo Testamento, em regra para motivar a fé ou a vivência quotidianas e mesmo quando são escolhidos no Novo Testamento a motivação é semelhante: activar mecanismos emocionais ou alavancar espectativas espirituais dos que vivem «sem esperança» ou desiludidos... Pedindo-te paciência, vem comigo fazer o percurso do texto supra referido, o qual tem lugares paralelos em S.Marcos 8:11-30, S. Lucas 8:18-20 e 12;54-56, para no final ambos nos interpelarmos: «Quem é Cristo para mim?»

Há um contexto que nos permite entender correctamente o que está em causa. Na verdade, há pessoas que para crer precisam de ver sinais extraordinários. É o caso dos fariseus e dos saduceus, que queriam experimentar/tentar o Rabi que se apresentava ao povo. Eles representavam as forças partidárias da sociedade judaica de então mais importantes: os primeiros, formavam um partido que dava muita importância aos ritos e cerimónias. Eram mais piedosos que todos os outros, como diziam, e, por isso, separavam-se das pessoas comuns; os segundos, eram também dum partido materialista, que não criam na vida depois da morte, não aceitavam os anjos nem as tradições dos anciãos. Como vês, Elias, um partido mais religioso, outro mais civilista.

E queriam ver um milagre - mais um milagre - pensando, assim, que tal lhes daria melhor compreensão do que se estava a passar, das pessoas que seguiam o Rabi e dos poderes deste; porém, estavam impreparados porque nem sequer o significado do milagres de Jonas eram capazes de descortinar. Jesus, a quem interpelavam, querendo pô-lo à prova, já lhes tinha indicado o sinal de Jonas, dando-lhes pistas para reconhecerem quem estava diante deles. Eram, porém, inconpetentes para tanto. É assim quase sempre: quem é incrédulo não passará a crer por causa dos milagres. No caso, eles eram incrédulos em relação à acção do Messias - não passarim a crer n'Ele depois do milagre pedido. Não souberam interpretar que «como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim estaria o Filho do homem três dias e três noites no seio da terra. Fazer tal associação, desmascará-los-ia! Concordas, Elias?

Ou seja, esses homens não estavam prontos para vislumbrar além da sua própria filosofia de vida e, por isso, mesmo com milagres, não reconheceriam aquele que ouviam como portador de algo melhor. Sem fé é impossível agradar a Deus! E só a fé valoriza o miraculoso, a acção de Deus.

Jesus deixou-os a falar sozinhos, retirando-se, isto é, conhecendo-lhe o propósito, foi-se embora. Não foi a atitute correcta? Que outra poderia ter tido o Mestre que eles interpelavam?

Parece-me que do contexto depreende-se que resultam consequências nefastas para os que não estão disponíveis para ver além da religião e das condições da vida social estabelecidas. Aliás, o fermento dos fariseus e dos saduceus dava alma à acção que prosseguiam como religiosos e políticos. A ela não escapavam os discípulos do Mestre tão envolvidos com o pão do quotidiano, da sobrevivência, que é o que representa o pão, que já se tinham esquecidos dos milagres operados e pareciam-se com os fariseus e saduceus pois reagim como eles, influenciados pelas suas doutrinas. E a incredulidade distorce a mensagem do Evangelho, a revelação de Cristo, a natureza do pão de Deus que é alimento espiritual. Os discípulos corriam esse risco. Com efeito, apesar dos milagres, ainda reagiam sob a influência das doutrinas dos ditos cujos religiosos e políticos. Apesar da multiplicação milagrosa do pão, por duas vezes, estavam prisioneiros do que o estômago pedia - o pão comum.

Talvez concordes, Elias, que é possível afirmar, neste resumo contextual, que a religião e a política, em si importantes, não são o meio suficiente para se poder entender as coisas de Deus e do seu plano em Cristo! Para os propósitos do Mestre era essencial levar os discípulos dali - levou-os para a outra banda do lago, simbolicamente retirando-os do espaço onde imperava a lei dos religiosos e políticos para dar significado à vida que tinham, seguindo-o.

Nota o seguinte, caro amigo. É preciso identificar as opiniões do povo para conhecer o limiar a que chegou no conhecimento das coisas espirituais! Concordas? Não vale a pena insistir no ensino que é do domínio comum - é preciso falar do que está por descobrir. Mas o que se constata é que se perde muito tempo e também energias a argumentar sobre a valia desta ou daquela religião, desta ou doutra denominação, ou desta ou doutra forma de organização social ou política. É preciso dar o passo decisivo adiante. Sobre a interrogação Quem dizem os homens (o povo) ser o Filho do homem? sabia-se muito, mas sem certezas: Era João Baptista, Elias, Jeremias ou outro dos profetas. Ou seja, alguém que não está mas cuja obra precisa de ser expressa por alguém, de modo que não constitua surpresa, imprevisibilidade, conhecimento não dominado. A comodidade de não ter de abrir portas ao que se anunciava de novo, isto é, a voz do povo apontava no sentido de não se mudarem as regras do jogo que sabiam jogar - na religião que praticavam e nas regras da organização estabelecida (queriam o libertador que havia de vir, mas teria de ser guerreiro para os livrar do jugo estrangeiro!)

O repto directo viria a seguir, naquele ambiente propício à reflexão e ao compromisso: E vós quem dizeis que eu sou? Na pergunta anterior, Jesus dera uma pista que talvez admitisse uma referência a seu respeito mais próxima da natureza da sua missão entre o povo: Filho do Homem, disse a propósito de si. Essa expressão é usada dezenas de vezes nos Evangelhos, como agora sabemos. E Filho do Homem, porquê? Que interessava isso para a resposta à pergunta dirigida aos discípulos? Tu sabe, Elias, que a expressão significa, antropologicamente, que Jesus se referia à sua natureza humana, como a de qualquer outro ser humano? S. Paulo escreveu que Jesus se fez semelhante aos homens. A antropologia, a ciência que estuda o ser humano na vertentes biológica, psiquica e social e na sua relação com o meio ambiente, permite-nos ligar a expressão Filho do Homem ao corpo, à mente e ao modo como se relacionam. Cientificamente, digamos assim, o Filho do Homem é um humano na sua natureza. Mas tal expressão tem uma forte conotação messiânica, por referência ao livro do profeta Daniel 7:13-14: «Eu estava olhando nas minhas visões de noite, e vi que vinha nas nuvens do céu um como o filho do homem. (…) Foi-lhe dado o domínio, a honra e o reino, todos os povos, nações e línguas o adoraram. O seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino o único que não será destruído». E entre os judeus era reconhecido esse sentido messiânico da expressão, da qual resultava a ideia de um salvador geral.

Parece que o povo se esquecera da promessa, que o Messias viria e era aguardado; melhor, o povo queria um messias mas não com as características daquele Mestre, que, quanto muito, seria também um profeta que fazia milagres. Essa era a ideia apurada pelos discípulos. A popularidade de Jesus era muito grande entre o povo por causa dos milagres – já os sermões eram postos em causa pelos religiosos e políticos e isso dividia a opinião do povo - mas não havia revelação quanto à ligação da expressão que Jesus dava – Filho do Homem – a si próprio e à sua missão messiânica a favor do povo de Israel e do Mundo. Tu sabes que não era importante que Jesus tivesse o reconhecimento do povo para saber quem efectivamente era, o próprio Verbo de Deus: No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus e o Verbo era Deus; o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Vimos a sua glória, a glória como a do unigénito do Pai, chei de graça e de verdade. Mas era-lhe necessário que não existisse qualquer dúvida quanto a isso entre os discípulos!

«Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo», declarou Pedro, com a concordância de todos, dada de seguida, como julgo. O compromisso cristão assenta nesta confissão. Ela pressupõe que há reconhecimento pessoal da necessidade da intervenção de Deus na vida humana. Antes dela podemos deixar as nossas actividades, dedicarmo-nos a um projecto religioso, viver de forma honrada, até servir e amar o próximo. Isso é essencialmente religião, designio moral, lutar contra a tendência natural de fazer o que desagrada a Deus. Qualquer religioso pode chegar a esse estadio de aperfeiçoamento moral! Pedro reconheceu a natureza e missão do seu Mestre: Ele era o Ungido, o que se voluntariara para servir o plano de salvação que estava previsto desde a fundação do mundo.

A vida cristã inicia-se e prossegue sob a verdade dessa confição: Um dia um outro homem, diante da clarividência do rabi Jesus, declarou: Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel! (João 1: 49). Esta descoberta ou revelação espiritual não acontece por mérito e inteligência humana. É revelação de Deus. A salvação não é resultado do esforçado humano: Deus revela, chama e o homem, livremente, atende. Para os discipulos, aquela revelação tinha eficácia para sustentar a sua relação com a missão de Cristo e deviam mantê-la em segredo, mas só até que o Filho do homem fosse ressuscitado dentre os mortos (16:20 e 17:9). Hoje a notícia é para correr até à extremidade da Terra!

Para concluir esta missiva (não esperavas, Elias, que voltasse ao teu contacto com este assunto, mas, no momento, é o que me inteiramente ocupa a mente e o coração e sei que és sensivel ao tema!), sem retórica, pergunto: Em que estadio do nosso envolvimento com Cristo nos encontramos? É o Filho de Deus? Beneficiamos da sua acção salvífica, reconhecendo que é o Messias? Estamos determinados a dizê-lo aos outros, que não estão nesse patamar de convicção? Afinal, resumindo, não é o que o está ao teu alcance – e do meu, claro! - dizer que o Filho do homem é o Ungido de Deus, o Salvador do Mundo, que venceu a morte, ressuscitando, e que é aguardado para cumprir o prometido?

Pensa nisso, e aguarda que dê seguimento às tuas missivas sem resposta. O amigo tem paciência.

Abraçando-te,

6/10/2024