Caro Elias, quem é Cristo para ti?
Não tenho tido ânimo para responder às várias mensagens que me mandaste, entretanto. Algumas vieram por meios telemáticos e «perderam-se» no amontoado em que se transformam as caixas de correspondência. Releva, por favor.
Hoje, detive-me na leitura do texto biblico seguinte: S. Mateus captílo 16: 1-16. Fiquessei-me, em particular no verso 16, onde se lê «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.» Em versões mais próximas do linguajar moderno lê-se mais exactamente: «Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo».
Vendo o texto, parece que se pode dividir em três partes, as quais me servirão de referência para a exposição, ou seja: a primeira (v.1-4) refere-se à preocupação do que é imediato, espetacular e garante visibilidade aos protagonistas que têm conhecimento imenso sobre tudo mas não sobre o essencial da vida; a segunta (v.5-12) refere-se à necessidade de ter cautela para não deixar que o brilho do conhecimento dos religiosos, políticos e outros sábios anule a experiência do miraculoso, pois podem ocorrer milagres tão essenciaia à fé como o do profeta Jonas; a terceira (v.13-16) evidencia que o mais importante é ter noção daquilo em que acreditamos para viver uma vida nova, diferente.
Sabes, com bastante frequência, os textos base dos sermões que vamos escutando são mais amiúde escolhidos no Antigo Testamento, em regra para motivar a fé ou a vivência quotidianas e mesmo quando são escolhidos no Novo Testamento a motivação é semelhante: activar mecanismos emocionais ou alavancar espectativas espirituais dos que vivem «sem esperança» ou desiludidos... Pedindo-te paciência, vêm comigo fazer o percurso do texto supra referido, o qual tem lugares paralelos em S.Marcos 8:11-30, S. Lucas 8:18-20 e 12;54-56, para no final ambos nos interpelarmos: «Quem é Cristo para mim?»
Há um contexto que nos permite entender correctamente o que está em causa. Na verdade, há pessoas que para crer precisam de ver sinais extraordinários. É o caso dos fariseus e dos saduceus, que queriam experimentar/tentar o Rabi que se apresentava ao povo. Eles representavam as forças partidárias da sociedade judaica de então mais importantes: os primeiros, formavam um partido que dava muita importância aos ritos e cerimónias. Eram mais piedosos que todos os outros, como diziam, e, por isso, separavam-se das pessoas comuns; os segundos, eram também dum partido materialista, que não criam na vida depois da morte, não aceitavam os anjos nem as tradições dos anciãos. Como vês, Elias, um partido mais religioso, outro mais civilista.
E queriam ver um milagre -, mais um milagre - pensando, assim, que tal lhes daria melhor compreensão do que se estava a passae, das pessoas que seguiam o Rabi e dos poderes deste; porém, estavam impreparados porque nem sequer o significado do milagres de Jonas eram capazes de descortinar. Jesus, a quem interpelavam, querendo pô-lo à prova, já lhes tinha indicado o sinal de Jonas, dando-lhes pistas para reconhecerem quem estava diante deles. Eram, porém, inconpetentes para tanto. É assim quase sempre: quem é incrédulo não passará a crer por causa dos milagres. No caso, eles eram incrédulos em relação à acção do Messias - não passarim a crer n'Ele depois do milagre pedido. Não souberam interpretar que «como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim estaria o Filho do homem três dias e três noites no seio da terra. Fazer tal associação, desmarcará-los-ía! Concordas, Elias?
Ou seja, esses homens não estavam prontos para vislumbrar além da sua própria filosofia de vida e, por isso, mesmo com milagres, não reconheceriam aquele que ouviam como portador de algo melhor. Sem fé é impossível agradar a Deus! E só a fé valoriza o miraculoso, a acção de Deus.
Jesus deixou-os a falar sozinhos, retirando-se, isto é, conhecendo-lhe o propósito, foi-se embora. Não foi a atitute correcta? Que outra poderia ter tido o Mestre que eles interpelavam?
Parece-me que do contexto depreende-se que resultam consequências nefastas para os que não estão disponíveis para ver além da religião e das condições da vida social estabelecidas. Aliás, o fermento dos fariseus e dos saduceus dava alma à acção que prosseguiam como religiosos e políticos. A ela não escapavam os discípulos do Mestre tão envolvidos com o pão do quotidiano, da sobrevivência, que é o que representa o pão, que já se tinham esquecidos dos milagres operados e pareciam-se com os fariseus e saduceus pois reagim como eles, influenciados pelas suas doutrinas. E a incredulidade distorce a mensagem do Evangelho, a revelação de Cristo, a natureza do pão de Deus que é alimento espiritual. Os discípulos corriam esse risco. Com efeito, apesar dos milagres, ainda reagiam sob a influência das doutrinas dos ditos cujos religiosos e políticos. Apesar da multiplicação milagrosa do pão, por duas vezes, estavam prisioneiros do que o estômago pedia - o pão comum.
Talvez concordes, Elias, que é possível afirmar, neste resumo contextual, que a religião e a política, em si importantes, não são o meio suficiente para se poder entender as coisas de Deus e do seu plano em Cristo! Para os propósitos do Mestre era essencial levar os discípulos dali - levou-os para a outra banda do lago, simbolicamente retirando-os do espaço onde imperava a lei dos religiosos e políticos para dar significado à vida que tinham, seguindo-o.
Nota o seguinte, caro amigo. É preciso identificar as opiniões do povo para conhecer o limiar a que chegou no conhecimento das coisas espirituais! Concordas? Não vale a pena insistir no ensino que é do domínio comum - é preciso falar do que está por descobrir. Mas o que se constata é que se perde muito tempo e também energias a argumentar sobre a valia desta ou daquela religião, desta ou doutra denominação, ou desta ou doutra forma de organização social ou política. É preciso dar o passo decisivo adiante. Sobre a interrogação Quem dizem os homens (o povo) ser o Filho do homem?» sabia-se muito, mas sem certezas: Era João Baptista, Elias, Jeremias ou outro dos profetas. Ou seja, alguém que não está mas cuja obra precisa de ser expressa por alguém, de modo que não constitua surpresa, imprevisibilidade, conhecimento não dominado. A comodidade de não ter de abrir portas ao que se anunciava de novo, isto é, a voz do povo apontava no sentido de não se mudarem as regras do jogo que sabias jogar - na religião que praticavam e nas regras da organização estabelecida (queriam o libertador que havia de vir, mas teria de ser guerreiro para os livrar do jugo estrangeiro!)
O repto directo viria a seguir, naquele ambiente propício à reflexão e ao compromisso: E vós quem dizeis que eu sou? Na pergunta anterior, Jesus dera uma pista que talvez admitisse uma referência a seu respeito mais próxima da natureza da sua missão entre o povo: Filho do Homem, disse a propósito de si. Essa expressão é usada dezenas de vezes nos Evangelhos, como agora sabemos. E Filho do Homem, porquê? Que interessava isso para à resposta à pergunta dirigida aos discípulos? Tu sabe, Elias, que a expressão significa, antropologicamente, que Jesus se referia à sua natureza humana, como a de qualquer outro ser humano. S. Paulo escreveu que Jesus se fez semelhante aos homens. A antropologia, a ciência que estuda o ser humano na vertentes biológica, psiquica e social e na sua relação com o meio ambiente, permite-nos ligar a expressão Filho do Homem ao corpo, à mente e ao modo como se relaciona. Cientificamente, digamos assim, o Filho do Homem é um humano na sua natureza. Mas tal expressão tem uma forte conotação messiânica, por referência ao livro do profeta Daniel 7:13-14: «Eu estava olhando nas minhas visões de noite, e vi que vinha nas nuvens do céu um como o filho do homem. (…) Foi-lhe dado o domínio, a honra e o reino, todos os povos, nações e línguas o adoraram. O seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino o único que não será destruído». E entre os judeus era reconhecido esse sentido messiânico da expressão, da qual resultava a ideia de um salvador geral.
Parece que o povo se esquecera da promessa, que o Messias viria e era aguardado; melhor, o povo queria um messias mas não com as características daquele Mestre, que, quanto muito, seria também um profeta que fazia milagres. Essa era a ideia apurada pelos discípulos. A popularidade de Jesus era muito grande entre o povo por causa dos milagres – já os sermões eram postos em causa pelos religiosos e políticos e isso dividia a opinião do povo - mas não havia revelação quanto à ligação da expressão que Jesus dava – Filho do Homem – a si próprio e à sua missão messiânica a favor do povo de Israel e do Mundo. Tu sabes que não era importante que Jesus tivesse o reconhecimento do povo para saber quem efectivamente era, o próprio Verbo de Deus: No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus e o Verbo era Deus; o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Vimos a sua glória, a glória como a do unigénito do Pai, chei de graça e de verdade. Mas era-lhe necessário que não existisse qualquer dúvida quanto a isso entre os discípulos!
«Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo», declarou Pedro, com a concordância de todos, dada de seguida, como julgo. O compromisso cristão assenta nesta confissão. Ela pressupõe que há reconhecimento pessoal da necessidade da intervenção de Deus na vida humana. Antes dela podemos deixar as nossas actividades, dedicarmo-nos a um projecto religioso, viver de forma honrada, até servir e amar o próximo. Isso é essencialmente religião, designio moral, lutar contra a tendência natural de fazer o que desagrada a Deus. Qualquer religioso pode chegar a esse estadio de aperfeiçoamento moral! Pedro reconheceu a natureza e missão do seu Mestre: Ele era o Ungido, o que se voluntariara para servir o plano de salvação que estava previsto desde a fundação do mundo.
A vida cristã inicia-se e prossegue sob a verdade dessa confição: Um dia um outro homem, diante da clarividência do rabi Jesus, declarou: Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel! (João 1: 49). Esta descoberta ou revelação espiritual não acontece por mérito e inteligência humana. É revelação de Deus. A Salvação não é esforçado humano: Deus revela, chama e o homem, livremente, atende. Para os discipulos, aquela revelação tinha eficácia para sustentar a sua relação com a missão de Cristo e deviam mantê-la em segredo, mas só até que o Filho do homem fosse ressuscitado dentre os mortos (16:20 e 17:9). Hoje a notícia é para correr até à extremidade da Terra!
Para concluir esta missiva (não esperavas, Elias, que voltasse ao teu contacto com este assunto, mas, no momento, é o que me inteiramente ocupa a mente e o coração e sei que és sensivel ao tema!), sem retórica, pergunto: Em que estadio do nosso envolvimento com Cristo nos encontramos? É o Filho de Deus? Beneficiamos da sua acção salvífica, reconhecendo que é o Messias? Estamos determinados a dizê-lo aos outros, que não estão nesse patamar de convicção? Afinal, resumindo, não é o que o está ao teu alcance – e do meu, claro! - dizer que o Filho do homem é o Ungido de Deus, o Salvador do Mundo, que venceu a morte, ressuscitando, e que é aguardado para cumprir o prometido?
Pensa nisso, e aguarda que dê seguimento às tuas missivas sem resposta. O amigo tem paciência.
Abraçando-te,
6/10/2024