sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

54 anos depois...

Caro Elias,

Não dispensamos as recordações, em particular das situações da vida que deixaram marca indelével.

Temos recordado tantas, tuas e minhas, vá lá, coisas que nos entrelaçam e alimentam a amizade que nos dá à vontade para todas as conversa.

Pois bem, fez-se hoje uma luzinha na minha cabeça, depois de termos conversado tanto sobre os lugares por onde passamos e nos marcaram.

Não me ocorreu, durante a conversa, que faz hoje, precisamente, 54 anos que, de malas aviadas, regressei a Luanda.

Bem sei que és mestre nas coisas referentes às linhas férreas que se construiram em Angola, em particular aquela que, vindo da costa atlântica, se embranhava nas profundezas do território, atés a fronteira, a leste. Eu via os comboios passar em Novas Lisboa, mas a história da linha interessava-te mais do que a mim... Eu ficava por ali a vê-los passar, carregados de mercadorias e gente... Tu sabias tudo acerca de cada composição que, no sentido da fronteira ou do mar, parava na capital de Norton de Matos.

Mas sobre conboios estamos conversados porque me falta cultura. Mas a memória do resto, em Nova Lisboa, ainda está viva e disso falamos tanto... 

Uma ocasião, estando aborrecido com o «clima» social na capital, decidi mudar de ares e trabalho. Pequei na minha Lambretta e, zás, quase um dia inteiro, fiz-me à estrada para Nova Lisboa. Estamos no fim de Julho de 1970. Tu chegaste depois e conheces os pormenores da aventura. Não te maço, repetindo-os. Lá na pensão, que escolheste por sugestão minha - afinal, foi lá que me alojei uma semana após ter posto os és na cidade... - falámos tantas vezes da ousadia que foi percorrer aqueles 600 quilómetros sem preparação prévia... Nem bagagem, nem sítio onde dormir... Tudo o que os 20 anos justificavam de aventura e irresponsabilidade!

7 Meses depois, foi diferente! O avião e a carreira de transporte de passageiros e mercadorias facilitaram muito o retor... Tu ficaste para cumprir a tua recruta e especialidade militar. Eu regressei antes que o serviço militar que apanhasse. Apanhou-me em Julho de 1971, mas nos meses de Março e Julho vivi das economias dos meses de trabalho na capital do planalto e foi tudo muito bom! Ainda não tinha apreciado, como nesses meses, o burburinho luandense...

Tu bem querias frui-lo, mas em Nova Lisboa podias continuar a contar comboios, a sublinhar no teu diário as particularidades das merdacorias e as muitas cores de que se vestiam aquelas gentes que vinham da fronteira para ver o... mar!

Deixei nesse dia 28 de Fevereiro de 1971 parte de mim no café com vista para o jardim, onde o ribombar dos trovões nos dias tempestade me tiravam da atenção do que estava a estudar...  Nem os apitos do comboio que descia se ouviam, mas tu sabias que o rimbombar dos trovões era passageiro e logo mais subiria outro para abraçar a fronteira, que nem sabíamos onde ficava...

E nunca mais voltamos e tu, em dado dia, disseste-me que os comboios tinham parado e, portanto, não voltarias ao planalto...

E agora que os comboios voltaram a circular, regressavas?

Fica para a conversa que a breve trecho teremos.

 

 

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Sorte da caturra...



A propósito duma caturra...

Um dia, um homem, que vivia só, sucumbiu à mesa de um café, no aeroporto de Lisboa.
Biólogo, músico, um intelectual...
Foi enterrado sem que se soubesse se tinha ou não família.
Soube-se, mais tarde, que, quando estava em casa (aliás, um antro de sujidade, desde que a cabeça dele se destrambelhou...), tinha a companhia de duas aves...
O senhorio despejou a casa, por falta de pagamento da renda mensal, por meio de arrombamento. Lá estavam o Solicitador de Execução, o serralheiro, o Sub-chefe da polícia da esquadra local, com dois agentes... (não sabiam se o inquilino estava dentro de casa; podia haver resistência... ihihih). No meio do lixo, das centenas de livros (muitas dezenas novos, nunca lidos...) de filosofia, psicologia, ciências sociais em geral, religião (judaísmo, islamismo, cristianismo...), dos móveis, do cofre, das jóias... ainda havia vida. Não, não era o dono da casa, que tinha morrido e não se sabia, nem mesmo os que tomavam, agora, a casa de «assalto» tinha ideia disso. Esse vivera sozinho e estava enterrado... Havia uma «arara» viva, cujas companheira não resistira, provavelmente à fome, à sede ou à...saudade! Foram abandonadas pelo dono que saíra e não voltara... Foi logo «transportada para o Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade»... Sorte dela porque aquela equipa de «arrobamento» tinha sensibilidade. Sorte dela porque o respectivo director se empenhou, pessoalmente, em recuperá-la e garantir-lhe bem estar... Sorte dela porque, 6 meses após a morte do seu dono, os familiares (herdeiros!) se interessaram por ela e a primeira coisa que fizeram foi recuperá-la para ser companhia lá em casa...
Afinal não era uma ARARA. Tratava-se duma ave «vulgarmente conhecida por caturra», da espécie «Nymphicus hollandius».
E pronto, estava garantido o futuro da CATURRA como «dama de companhia»... Mas o dono morreu sozinho, sem cuidados, ao abandono... Até na morte lhe faltaram os amigos, conhecidos e os que seriam, legalmente, seus herdeiros...
Sorte da Caturra! Há crianças que deixamos morrer...

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Quem é Cristo para ti...



Caro Elias, quem é Cristo para ti?


Não tenho tido ânimo para responder às várias mensagens que me mandaste, entretanto. Algumas vieram por meios telemáticos e «perderam-se» no amontoado em que se transformam as caixas de correspondência. Releva, por favor.

Hoje, detive-me na leitura do texto biblico seguinte: S. Mateus captílo 16: 1-16. Fiquessei-me, em particular no verso 16, onde se lê «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.» Em versões mais próximas do linguajar moderno lê-se mais exactamente: «Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo».

Vendo o texto, parece que se pode dividir em três partes, as quais me servirão de referência para a exposição, ou seja: a primeira (v.1-4) refere-se à preocupação do que é imediato, espetacular e garante visibilidade aos protagonistas que têm conhecimento imenso sobre tudo mas não sobre o essencial da vida; a segunta (v.5-12) refere-se à necessidade de ter cautela para não deixar que o brilho do conhecimento dos religiosos, políticos e outros sábios anule a experiência do miraculoso, pois podem ocorrer milagres tão essenciaia à fé como o do profeta Jonas; a terceira (v.13-16) evidencia que o mais importante é ter noção daquilo em que acreditamos para viver uma vida nova, diferente.

Sabes, com bastante frequência, os textos base dos sermões que vamos escutando são mais amiúde escolhidos no Antigo Testamento, em regra para motivar a fé ou a vivência quotidianas e mesmo quando são escolhidos no Novo Testamento a motivação é semelhante: activar mecanismos emocionais ou alavancar espectativas espirituais dos que vivem «sem esperança» ou desiludidos... Pedindo-te paciência, vêm comigo fazer o percurso do texto supra referido, o qual tem lugares paralelos em S.Marcos 8:11-30, S. Lucas 8:18-20 e 12;54-56, para no final ambos nos interpelarmos: «Quem é Cristo para mim?»

Há um contexto que nos permite entender correctamente o que está em causa. Na verdade, há pessoas que para crer precisam de ver sinais extraordinários. É o caso dos fariseus e dos saduceus, que queriam experimentar/tentar o Rabi que se apresentava ao povo. Eles representavam as forças partidárias da sociedade judaica de então mais importantes: os primeiros, formavam um partido que dava muita importância aos ritos e cerimónias. Eram mais piedosos que todos os outros, como diziam, e, por isso, separavam-se das pessoas comuns; os segundos, eram também dum partido materialista, que não criam na vida depois da morte, não aceitavam os anjos nem as tradições dos anciãos. Como vês, Elias, um partido mais religioso, outro mais civilista.

E queriam ver um milagre -, mais um milagre - pensando, assim, que tal lhes daria melhor compreensão do que se estava a passae, das pessoas que seguiam o Rabi e dos poderes deste; porém, estavam impreparados porque nem sequer o significado do milagres de Jonas eram capazes de descortinar. Jesus, a quem interpelavam, querendo pô-lo à prova, já lhes tinha indicado o sinal de Jonas, dando-lhes pistas para reconhecerem quem estava diante deles. Eram, porém, inconpetentes para tanto. É assim quase sempre: quem é incrédulo não passará a crer por causa dos milagres. No caso, eles eram incrédulos em relação à acção do Messias - não passarim a crer n'Ele depois do milagre pedido. Não souberam interpretar que «como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim estaria o Filho do homem três dias e três noites no seio da terra. Fazer tal associação, desmarcará-los-ía! Concordas, Elias?

Ou seja, esses homens não estavam prontos para vislumbrar além da sua própria filosofia de vida e, por isso, mesmo com milagres, não reconheceriam aquele que ouviam como portador de algo melhor. Sem fé é impossível agradar a Deus! E só a fé valoriza o miraculoso, a acção de Deus.

Jesus deixou-os a falar sozinhos, retirando-se, isto é, conhecendo-lhe o propósito, foi-se embora. Não foi a atitute correcta? Que outra poderia ter tido o Mestre que eles interpelavam?

Parece-me que do contexto depreende-se que resultam consequências nefastas para os que não estão disponíveis para ver além da religião e das condições da vida social estabelecidas. Aliás, o fermento dos fariseus e dos saduceus dava alma à acção que prosseguiam como religiosos e políticos. A ela não escapavam os discípulos do Mestre tão envolvidos com o pão do quotidiano, da sobrevivência, que é o que representa o pão, que já se tinham esquecidos dos milagres operados e pareciam-se com os fariseus e saduceus pois reagim como eles, influenciados pelas suas doutrinas. E a incredulidade distorce a mensagem do Evangelho, a revelação de Cristo, a natureza do pão de Deus que é alimento espiritual. Os discípulos corriam esse risco. Com efeito, apesar dos milagres, ainda reagiam sob a influência das doutrinas dos ditos cujos religiosos e políticos. Apesar da multiplicação milagrosa do pão, por duas vezes, estavam prisioneiros do que o estômago pedia - o pão comum.

Talvez concordes, Elias, que é possível afirmar, neste resumo contextual, que a religião e a política, em si importantes, não são o meio suficiente para se poder entender as coisas de Deus e do seu plano em Cristo! Para os propósitos do Mestre era essencial levar os discípulos dali - levou-os para a outra banda do lago, simbolicamente retirando-os do espaço onde imperava a lei dos religiosos e políticos para dar significado à vida que tinham, seguindo-o.

Nota o seguinte, caro amigo. É preciso identificar as opiniões do povo para conhecer o limiar a que chegou no conhecimento das coisas espirituais! Concordas? Não vale a pena insistir no ensino que é do domínio comum - é preciso falar do que está por descobrir. Mas o que se constata é que se perde muito tempo e também energias a argumentar sobre a valia desta ou daquela religião, desta ou doutra denominação, ou desta ou doutra forma de organização social ou política. É preciso dar o passo decisivo adiante. Sobre a interrogação Quem dizem os homens (o povo) ser o Filho do homem?» sabia-se muito, mas sem certezas: Era João Baptista, Elias, Jeremias ou outro dos profetas. Ou seja, alguém que não está mas cuja obra precisa de ser expressa por alguém, de modo que não constitua surpresa, imprevisibilidade, conhecimento não dominado. A comodidade de não ter de abrir portas ao que se anunciava de novo, isto é, a voz do povo apontava no sentido de não se mudarem as regras do jogo que sabias jogar - na religião que praticavam e nas regras da organização estabelecida (queriam o libertador que havia de vir, mas teria de ser guerreiro para os livrar do jugo estrangeiro!)

O repto directo viria a seguir, naquele ambiente propício à reflexão e ao compromisso: E vós quem dizeis que eu sou? Na pergunta anterior, Jesus dera uma pista que talvez admitisse uma referência a seu respeito mais próxima da natureza da sua missão entre o povo: Filho do Homem, disse a propósito de si. Essa expressão é usada dezenas de vezes nos Evangelhos, como agora sabemos. E Filho do Homem, porquê? Que interessava isso para à resposta à pergunta dirigida aos discípulos? Tu sabe, Elias, que a expressão significa, antropologicamente, que Jesus se referia à sua natureza humana, como a de qualquer outro ser humano. S. Paulo escreveu que Jesus se fez semelhante aos homens. A antropologia, a ciência que estuda o ser humano na vertentes biológica, psiquica e social e na sua relação com o meio ambiente, permite-nos ligar a expressão Filho do Homem ao corpo, à mente e ao modo como se relaciona. Cientificamente, digamos assim, o Filho do Homem é um humano na sua natureza. Mas tal expressão tem uma forte conotação messiânica, por referência ao livro do profeta Daniel 7:13-14: «Eu estava olhando nas minhas visões de noite, e vi que vinha nas nuvens do céu um como o filho do homem. (…) Foi-lhe dado o domínio, a honra e o reino, todos os povos, nações e línguas o adoraram. O seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino o único que não será destruído». E entre os judeus era reconhecido esse sentido messiânico da expressão, da qual resultava a ideia de um salvador geral.

Parece que o povo se esquecera da promessa, que o Messias viria e era aguardado; melhor, o povo queria um messias mas não com as características daquele Mestre, que, quanto muito, seria também um profeta que fazia milagres. Essa era a ideia apurada pelos discípulos. A popularidade de Jesus era muito grande entre o povo por causa dos milagres – já os sermões eram postos em causa pelos religiosos e políticos e isso dividia a opinião do povo - mas não havia revelação quanto à ligação da expressão que Jesus dava – Filho do Homem – a si próprio e à sua missão messiânica a favor do povo de Israel e do Mundo. Tu sabes que não era importante que Jesus tivesse o reconhecimento do povo para saber quem efectivamente era, o próprio Verbo de Deus: No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus e o Verbo era Deus; o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Vimos a sua glória, a glória como a do unigénito do Pai, chei de graça e de verdade. Mas era-lhe necessário que não existisse qualquer dúvida quanto a isso entre os discípulos!

«Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo», declarou Pedro, com a concordância de todos, dada de seguida, como julgo. O compromisso cristão assenta nesta confissão. Ela pressupõe que há reconhecimento pessoal da necessidade da intervenção de Deus na vida humana. Antes dela podemos deixar as nossas actividades, dedicarmo-nos a um projecto religioso, viver de forma honrada, até servir e amar o próximo. Isso é essencialmente religião, designio moral, lutar contra a tendência natural de fazer o que desagrada a Deus. Qualquer religioso pode chegar a esse estadio de aperfeiçoamento moral! Pedro reconheceu a natureza e missão do seu Mestre: Ele era o Ungido, o que se voluntariara para servir o plano de salvação que estava previsto desde a fundação do mundo.

A vida cristã inicia-se e prossegue sob a verdade dessa confição: Um dia um outro homem, diante da clarividência do rabi Jesus, declarou: Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel! (João 1: 49). Esta descoberta ou revelação espiritual não acontece por mérito e inteligência humana. É revelação de Deus. A Salvação não é esforçado humano: Deus revela, chama e o homem, livremente, atende. Para os discipulos, aquela revelação tinha eficácia para sustentar a sua relação com a missão de Cristo e deviam mantê-la em segredo, mas só até que o Filho do homem fosse ressuscitado dentre os mortos (16:20 e 17:9). Hoje a notícia é para correr até à extremidade da Terra!

Para concluir esta missiva (não esperavas, Elias, que voltasse ao teu contacto com este assunto, mas, no momento, é o que me inteiramente ocupa a mente e o coração e sei que és sensivel ao tema!), sem retórica, pergunto: Em que estadio do nosso envolvimento com Cristo nos encontramos? É o Filho de Deus? Beneficiamos da sua acção salvífica, reconhecendo que é o Messias? Estamos determinados a dizê-lo aos outros, que não estão nesse patamar de convicção? Afinal, resumindo, não é o que o está ao teu alcance – e do meu, claro! - dizer que o Filho do homem é o Ungido de Deus, o Salvador do Mundo, que venceu a morte, ressuscitando, e que é aguardado para cumprir o prometido?

Pensa nisso, e aguarda que dê seguimento às tuas missivas sem resposta. O amigo tem paciência.

Abraçando-te,

6/10/2024

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Da sinalética pública...

    Meu caro Elias Bogalho, fiquei incrédulo diante da manifestação da tua preocupação acerca de tão irrelevantes pormenores, que designaste como «sinais evidentes de discriminação», manifestados numa das tuas missivas, datada de há umas semanas. Não leves a mal dizer-te que são «irrelevantes pormenores»... Não significa que não tenham grande significado simbólico e que não sejam manifestações dum certo «subconsciente colectivo» a que as instituições ainda estão sujeitas, mesmos quando são de natureza pública, eleitas por «voto secreto e universal», como é o caso das Assembleias de freguesia, das Câmaras e Assembleias Municipais, e com base, muitas vezes, em programas nos quais «o religioso» não tem manifestação visível ou directa.

    É verdade e eu próprio já o constatei em diferentes partes do território nacional. Se não vejo nenhuma discriminação no facto dos monumentos religiosos merecerem destaque em diferentes modos de orientar quem chega às cidades, vilas ou aldeias, designadamente para melhor orientar os forasteiros, em particular os estrangeiros, e nisso tu também não vês, é diferente, com efeito, o que evidencias nos «pormenores» aludidos. Em particular nas novas urbanizações, de duas uma: ou as Câmaras Municipais reservam logo espaços para destinar à construção de Templos (destinados à Igreja Católica romana, quase sempre, embora já as há para aí a considerar a construção de Mesquitas...) ou «oferecem» condições especiais de funcionamento em espaços privados, por exemplo, assinalando a presença de «capelas» a funcionar fora dos edifícios destinados especificamente ao Culto.

    Deste-te ao cuidado de, um a um, na área da cidade a que te referes, identificar os lugares de culto não católicos romanos completamente omitidos na sinalética pública. Por contraposição, lá estão as setinhas a indicar «capela católica», aqui e ali, de modo que se torna fácil chegar ao destino e «dar com o nariz» na porta certa, sem erros ou prévias deambulações. É muito assertiva a observação que fizeste ao «Senhor Presidente da Junta de Freguesia de ...» Mas não penses que vais ser compensado do teu esforço. Andaste de rua em rua, depois das buscas que fizeste no Google, a confirmar a existência de outros locais de Culto e encontraste, pelo menos, mais quatro, todos relacionados com a prática cristã protestante. 

A discriminação está no facto de a Junta ou a Câmara (parece que a sinalética é da responsabilidade desta e não daquela) fazer repetida referência à localização da dita Capela (que está instalada e funciona no rés-do-chão de um prédio de habitação à semelhança dos outros locais de culto da localidade) e não assinalar as demais. Na verdade, como bem sabes, estatisticamente, numa população residente de dez mil pessoas, mais de oito mil identificar-se-ão como católicos romanos praticantes e mil como não praticantes... São muitos votos! Aliás, são os votos «que contam» para eleger quem está na Junta de Freguesia ou na Câmara Municipal, mesmo que os cidadãos eleitos sejam, ideologicamente, anticatólicos ou, quiçá, ditos agnósticos e ateus. 

    O que me leva, naturalmente, à tua questão: Afinal o que está na Constituição e nas Leis não é para todos? Ou seja, o princípio da igualdade e o dever dos poderes públicos o respeitarem não é, por si só, suficiente para obstar a que tal discriminação ocorra? Devia ser, tanto mais que o Estado é laico. Se o que prevalece é o interesse de todos, numa comunidade pequena devem estar sinalizadas todas as situações de relevante interesse. Ou será mais relevante assinalar uma Capela do que uma Casa de Oração ou Mesquita? Pois é, Elias, é tudo o questão de percepção política para «localizar» os votos. Diz lá, onde colheste esse exemplo, que para ter sinalética pública é preciso demonstrar capacidade para virar o resultado das eleições autárquicas... E isso não é impossível pois há minorias, desde que organizadas, capazes de liderar o «sentido de voto das maiorias». Vê, pelo exemplo que dás, se os comunistas não são capazes de ficar à frente na disputa eleitoral quando a comunidade se diz maioritariamente cristã, católica romana... Podes reclamar, Elias, podes invocar a Constituição da República e exigir o cumprimento das leis, mas a capacidade de mobilizar quem vote em ti, ou nos que pensam como tu, é muito mais eficaz. Dá é muito trabalho e não sei se, com a tua idade, estás capaz para te envolver nisso.

    Olha, vai reclamando, mesmo que a motivação se centre nestas questões de «menor» importância! Na altura própria, sempre te «orgulharás» do teu voto que não resolverá coisa nenhuma...

    PS: Vai assim, em rascunho, com as gralhas normais da «escrita ao correr da pena».


segunda-feira, 8 de abril de 2024

E se os brasileiros se aculturassem...

    «Não é assunto novo para nós», sublinhou o meu amigo Elias Bogalho numa carta que encontrei na papelada por organizar e já tem bastantes dias. De facto, temos conversado longamente sobre o tema, mas, assim exposto, com base em situações concretas, ainda não. O melhor será «dar à estampa os próprios termos desse escrito que sintetiza bem a troca longa de pontos de vista e argumentos:

   «Não estava nas minhas cogitações retomar ta temática. Só que, vê só, tive uma pequena pane (daqueles contratempos para que não estamos nunca preparados...) no automóvel e tive de accionar a «assistência em viagem». Sorte a minha porque na última renovação do seguro hesitei em manter essa «alínea» do contrato. Afinal, só dou umas voltitas... Agora deu jeito! Não estava longe de casa, mas foi a forma mais cómoda de resolver a situação. E correu bem. Veio o reboque, mas o condutor era entendido, polivalente. Lá se aproximou da engrenagem do carro e, pronto, uma coisita de nada que cortou a «corrente» ao motor, disse ele, em sotaque do Brasil. Fiquei sem saber exactamente qual foi a natureza da pane, o que, para o caso, não interessa muito, mas muito satisfeito por o meu «salvador» ser polivalente e falar português, do Brasil, mas inteligível (vê lá se fosse um nepalês, acabado de chegar... bem, desde que resolvesse a pane ou me trouxesse o automóvel...).

Pois é, já estás a ver o filme: por onde ande, vá onde vá, durma onde durma, coma onde coma, etc e tal, o normal é encontrar um estrangeiro que me recebe, acode, serve, transporta... A questão da imigração, amigo, tem que se lhe diga. Mas nós não a temos abordado como se fosse negativa em si mesma. Ambos defendemos que os estrangeiros, gente de bem, à procura da felicidade, são bem-vindos! Então, sabendo-se que contribuem para o nosso progresso como nação, criando riqueza, alavancando actividades económicas, aportando conhecimento, experiência, com grande vontade de trabalhar e progredir, isso é ouro sobre azul. Sempre concordamos nesse modo de ver a questão. 

   «Especificamente, tenho cá para mim que há um problema sério com os brasileiros. Foi o homem do reboque que me chamou a atenção quando me disse, sobre uma observação minha sobre o modo de relacionamento formal entre o cliente da Seguradora - o segurado, que era eu - e o também cliente, que era ele, o empresário em nome individual: «No Brasil, a gente trata assim!» Omito os pormenores, mas imagina o efeito da conversa entre desconhecidos quando «você» é «tu», «tu» é você»... Fica chato, ao ouvido soa mal...

    «Pois é! Os brasileiros não se aculturam. Já reparaste nisso? Não nos temos focado nesse aspecto, mas é muito relevante para a «nossa portugalidade», para o nosso modo identitário. Na verdade, ouvimo-los dizer que gostam muito de bacalhau, da comida portuguesa em geral, do que é nosso. Mas não é isso que se vê quando nos sentamos à mesa, em casa deles. E no linguajar é ainda mais evidente. Todas as pessoas que conheço, há anos, que têm já Cartão de Cidadão português, continuam a falar como se fala em Copacabana, em Pernambuco, em Minas Gerais, no Natal ou no Rio Grande do Sul. A questão que me suscita perplexidade é o facto de não estar nas suas cogitações - estou a pensar, em particular, nos que têm dupla nacionalidade - aculturarem-se, isto é, "comportarem-se" como portugueses que são. Já não digo que saibam quem foi D. Afonso Henriques mas, pelo menos, que distingam bem o você e o tu... 

    Não te incomoda, quando vais pagar o preço da gasolina (antes, o gasolineiro estava à tua espera e perguntava-te: "Você aí, qué quanto litro?" Tu qué atestar?!" Agora, vais ao balcão e o empregado/a brasileiro/a diz-te: " Você paga com dinheiro? Tu não tem cartão?") e te sentes como se entrasses em "terra estranha, em país estrangeiro"? Posso estar a exagerar, mas são tantas as situações no dia-a-dia em relação com brasileiros que não se aculturaram, nem pretendem fazê-lo, que temo pela nossa «portugalidade», a médio prazo. Repara: com as centenas de milhar de brasileiros inseridos no nosso tecido económico, com a escola pública tão pouco exigente, como sabemos que é, amanhã falaremos todos como os brasileiros e, pior, o prato típico passará a ser feijão com arroz! Se tu consultas um médico e o identificas logo como brasileiro, se vais ao escritório de um advogado e ele te fala «você pra aqui, você pra acolá», se os amigos dos nossos netos, frequentando a mesma escola, logo se denunciam como brasileiros (no linguajar, no trato, no modo de estar...), será exagerado antever que estamos em «processo de absorção» por quem veio para ganhar a vida entre nós, por aqui ficou e vai ficar? 

    «Por fim, anota isto, uma enorme quantidade dos brasileiros - não tenho números, é só intuição - que vêm para Portugal identificam-se como evangélicos. E ao que sei, também na «religiosidade» não se aculturam... Vejo aqui na área de residência: não é porta sim, porta não, porque me dirias ser exagero sem tino, mas há para um templo católico várias «igrejas evangélicas» que pela respectiva denominação se vê imediatamente que procedem do Brasil ou tem influência brasileira. Olha, e para terminar, embora o tema continue em aberto para futuras conversas, quando ligas a rádio - várias frequências, todo o dia - não é no português do Brasil que ouves as prédicas? Os cânticos não são eles também originários do Brasil?  No próximo senso, vais ver, os que se dizem cristãos evangélicos vão passar dos "míseros" 2% - 3% para uns 10% -15% ...

    «Por agora, recebe o abraço amigo de sempre.

    Elias Bogalho»

    E pronto, hoje estou sem palavras para acrescentar o que quer que seja ao arrazoado do meu amigo... Até porque, não sendo recente a carta, não há pressa na resposta. Mas o tema é importante, não tenho dúvida.