segunda-feira, 8 de abril de 2024

E se os brasileiros se aculturassem...

    «Não é assunto novo para nós», sublinhou o meu amigo Elias Bogalho numa carta que encontrei na papelada por organizar e já tem bastantes dias. De facto, temos conversado longamente sobre o tema, mas, assim exposto, com base em situações concretas, ainda não. O melhor será «dar à estampa os próprios termos desse escrito que sintetiza bem a troca longa de pontos de vista e argumentos:

   «Não estava nas minhas cogitações retomar ta temática. Só que, vê só, tive uma pequena pane (daqueles contratempos para que não estamos nunca preparados...) no automóvel e tive de accionar a «assistência em viagem». Sorte a minha porque na última renovação do seguro hesitei em manter essa «alínea» do contrato. Afinal, só dou umas voltitas... Agora deu jeito! Não estava longe de casa, mas foi a forma mais cómoda de resolver a situação. E correu bem. Veio o reboque, mas o condutor era entendido, polivalente. Lá se aproximou da engrenagem do carro e, pronto, uma coisita de nada que cortou a «corrente» ao motor, disse ele, em sotaque do Brasil. Fiquei sem saber exactamente qual foi a natureza da pane, o que, para o caso, não interessa muito, mas muito satisfeito por o meu «salvador» ser polivalente e falar português, do Brasil, mas inteligível (vê lá se fosse um nepalês, acabado de chegar... bem, desde que resolvesse a pane ou me trouxesse o automóvel...).

Pois é, já estás a ver o filme: por onde ande, vá onde vá, durma onde durma, coma onde coma, etc e tal, o normal é encontrar um estrangeiro que me recebe, acode, serve, transporta... A questão da imigração, amigo, tem que se lhe diga. Mas nós não a temos abordado como se fosse negativa em si mesma. Ambos defendemos que os estrangeiros, gente de bem, à procura da felicidade, são bem-vindos! Então, sabendo-se que contribuem para o nosso progresso como nação, criando riqueza, alavancando actividades económicas, aportando conhecimento, experiência, com grande vontade de trabalhar e progredir, isso é ouro sobre azul. Sempre concordamos nesse modo de ver a questão. 

   «Especificamente, tenho cá para mim que há um problema sério com os brasileiros. Foi o homem do reboque que me chamou a atenção quando me disse, sobre uma observação minha sobre o modo de relacionamento formal entre o cliente da Seguradora - o segurado, que era eu - e o também cliente, que era ele, o empresário em nome individual: «No Brasil, a gente trata assim!» Omito os pormenores, mas imagina o efeito da conversa entre desconhecidos quando «você» é «tu», «tu» é você»... Fica chato, ao ouvido soa mal...

    «Pois é! Os brasileiros não se aculturam. Já reparaste nisso? Não nos temos focado nesse aspecto, mas é muito relevante para a «nossa portugalidade», para o nosso modo identitário. Na verdade, ouvimo-los dizer que gostam muito de bacalhau, da comida portuguesa em geral, do que é nosso. Mas não é isso que se vê quando nos sentamos à mesa, em casa deles. E no linguajar é ainda mais evidente. Todas as pessoas que conheço, há anos, que têm já Cartão de Cidadão português, continuam a falar como se fala em Copacabana, em Pernambuco, em Minas Gerais, no Natal ou no Rio Grande do Sul. A questão que me suscita perplexidade é o facto de não estar nas suas cogitações - estou a pensar, em particular, nos que têm dupla nacionalidade - aculturarem-se, isto é, "comportarem-se" como portugueses que são. Já não digo que saibam quem foi D. Afonso Henriques mas, pelo menos, que distingam bem o você e o tu... 

    Não te incomoda, quando vais pagar o preço da gasolina (antes, o gasolineiro estava à tua espera e perguntava-te: "Você aí, qué quanto litro?" Tu qué atestar?!" Agora, vais ao balcão e o empregado/a brasileiro/a diz-te: " Você paga com dinheiro? Tu não tem cartão?") e te sentes como se entrasses em "terra estranha, em país estrangeiro"? Posso estar a exagerar, mas são tantas as situações no dia-a-dia em relação com brasileiros que não se aculturaram, nem pretendem fazê-lo, que temo pela nossa «portugalidade», a médio prazo. Repara: com as centenas de milhar de brasileiros inseridos no nosso tecido económico, com a escola pública tão pouco exigente, como sabemos que é, amanhã falaremos todos como os brasileiros e, pior, o prato típico passará a ser feijão com arroz! Se tu consultas um médico e o identificas logo como brasileiro, se vais ao escritório de um advogado e ele te fala «você pra aqui, você pra acolá», se os amigos dos nossos netos, frequentando a mesma escola, logo se denunciam como brasileiros (no linguajar, no trato, no modo de estar...), será exagerado antever que estamos em «processo de absorção» por quem veio para ganhar a vida entre nós, por aqui ficou e vai ficar? 

    «Por fim, anota isto, uma enorme quantidade dos brasileiros - não tenho números, é só intuição - que vêm para Portugal identificam-se como evangélicos. E ao que sei, também na «religiosidade» não se aculturam... Vejo aqui na área de residência: não é porta sim, porta não, porque me dirias ser exagero sem tino, mas há para um templo católico várias «igrejas evangélicas» que pela respectiva denominação se vê imediatamente que procedem do Brasil ou tem influência brasileira. Olha, e para terminar, embora o tema continue em aberto para futuras conversas, quando ligas a rádio - várias frequências, todo o dia - não é no português do Brasil que ouves as prédicas? Os cânticos não são eles também originários do Brasil?  No próximo senso, vais ver, os que se dizem cristãos evangélicos vão passar dos "míseros" 2% - 3% para uns 10% -15% ...

    «Por agora, recebe o abraço amigo de sempre.

    Elias Bogalho»

    E pronto, hoje estou sem palavras para acrescentar o que quer que seja ao arrazoado do meu amigo... Até porque, não sendo recente a carta, não há pressa na resposta. Mas o tema é importante, não tenho dúvida.

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