quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Vou andar mais vezes em transpote público II

-Não… fico deste lado, mais perto da saída… - Então vai sair já? - Só em … Acomodei-me no lugar junto à janela. A senhora toda vestida de negro manteve-se sentada, desviou ambas as pernas, ajustou ao peito um saco de papel enorme, e lá passei a custo. Percebi que queria ficar onde estava e o meu destino também implicava um percurso maior. Foi a custo que percorri aqueles dois metros, depois de pagar o custo da viagem (estes autocarros estão equipados com todas as «modernices» electrónicas e é fácil para quem tem pré-comprados ou passe… quem compra bilhetes fica ali e é ultrapassado por quem está servido…): muita gente de pé, embora a hora não fosse considerada «de ponta». Vá lá, duas paragens depois e já estava naquela manobra toda para ficar à janela… -Vê-se que já fez compras de Natal – disse eu, olhando a senhora de soslaio, sem perder de vista o saco, que agora repousava no regaço, para decifrar o conteúdo… -Oh… É para mim, ofereceram-me… Deu um jeito ao saco e vi que, acomodado, estava o ramo de flores. -Parabéns! Se lhe ofereceram flores é porque o motivo é festivo… - disse, inseguro, vendo-lhe no rosto mais de sessenta primaveras, pelo menos, ou talvez mais, influenciando pela escuridão da vestimenta… - Mas também levo aqui uma prenda para oferecer no Natal… - disse-me, depois de agradecer os parabéns, sem denunciar o motivo da oferta das flores. – Uma coisita para o meu neto, que tem 8 anos… Estes miúdos agora têm tudo… a gente nem sabe o que lhes oferecer… Dinheiro, dou-lhe dinheiro que lhe pode vir a ser útil… -Pois é… mas o dinheiro agora também é mais escasso… baixam os salários, as pensões… - provoquei, para medir a reacção. O autocarro parou e ela saiu, levando um sorriso nos lábios. Com a conversa, nem demos pelo tempo passar. Até olvidei que estava atrasado… Tinha duas filhas e um neto. Enviuvara… Só inferindo percebi que não fora há mais de dois anos… «Então não é que o meu marido havia de morrer quando já estavam a descontar nas pensões de reforma, nas pensões de viuvez, nos subsídios de funeral… em tudo! Recebi muito menos…» Não me pareceu, mesmo assim, que estivesse mal. Tinha umas coisitas na terra… nada que se visse… azeite, umas terras, umas vinhas… mas o fisco andava em cima daquilo tudo, não dava para o trabalho… «Pronto, a gente governa-se e já disse às minhas filhas que tenho que acautelar o futuro… mas o meu neto poder contar com algum dinheiro… aí duzentos euros… Também não me ralo à procura do que ele já tem, nem arrisco dar-lhe o que ele não precisa… Elas sabem que até da minha pensão me levaram parte, estes senhores que não se importam com as viúvas…» Não deu tempo. O autocarro enfiou-se no corredor Bus e chegou ao destino num instantinho. Senão ainda teríamos desenvolvido melhor a questão da poupança. Que ela sempre foi mulher de ganhar 100 e gastar… 99! Só assim, mais o azeite e outras coisinhas que tirara da terra, foi possível acautelar o tempo que ainda tem pela frente e estar em condições, apesar dos cortes, de dar prendas às filhas e ao neto… em dinheiro! Apenas os sinais de luto, amiúde, lhe perturbavam o semblante.

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