quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Vou andar mais vezes em transporte público...

10 e 50 da manhã. O Sol já está lá no alto, mas inclinado, aquece pouco. Tiritam de frio duas cidadãs de idade sénior enquanto esperam o bus. -Bom dia! – digo ao chegar. Olham –me de esguelha, como que a perguntar: «Quem é este “bem educado”»? Não deve ser comum um estranho chegar e saudar… Insisto: -Bom dia… O autocarro ainda demora? -Humm… bom dia… ah… sim, demora… cada vez há menos e demoram mais tempo a chegar… estamos aqui vai para 15 minutos e…nada – disse a que aparentava mais idade das duas. -Para onde vai o senhor? – peguntou a outra. Lá lhes disse e ficamos inteirados do destino de cada um. Enquanto mirava a Av., perscrutando-a a cerca de 500 metros, intermitentemente, e espreitava o relógio, fui escutando a conversa. -A gente tem cada sonho! Veja só que esta noite sonhei com campas de cemitério… Acordei toda arrepiada… é que esta coisa dos sonhos tem que se lhe diga. Não quero nada morrer… Credo, sonhar com campas de cemitério… - dizia a mais idosa. -Não vá nisso, que sonhos todos têm e, às vezes, sabe bem acordar. Livramo-nos de cada uma… Olhe, eu, mais do que uma vez, livrei-me de morrer afogada… Ai que aflição… Valeu-me ter acordado! – disse a outra, que envergava uma camisola de lã rosa, calças e casaco cinza, que aproveitou para aconchegar ao pescoço. -Mas isso tem a ver com a morte… ninguém sonha com cemitérios e campas se não estiver para morrer… Ouvi isso duma senhora que deita as cartas e ela acerta muitas vezes… Não quero nada morrer… -Acredita nisso, senhora? Lá fui ouvindo o argumentário das duas. Porque sim, porque já sonhei que estava a chover e quando acordei estava tudo molhado… há outras pessoas que sonham que lhes vai sair a lotaria… é verdade que não sai… ainda não saiu… têm é que continuar a apostar… Ainda acredita nisso de deitar as cartas, da adivinhação, dos sonhos de pessoas a morrer que morrem mesmo… Ah! Só se for no tempo delas, que todos temos de morrer e por acaso sonhar com a morte até devia acontecer mais vezes, a ver se a gente se prepara para ela, que andamos descuidados… Não diga isso, que a morte é para esquecer… o raio do sonho anda me perturba… eu não quero morrer… Eu olhava para o fim da Av. E não via nada de autocarro a aproximar-se… -Estão a ver – disse –lhes - nem autocarro nem sinal dele… Já não vou chegar a horas… Olhe, o que importa é isto, a vida, o que temos que fazer… -Tá bem! Mas a gente também não pode apagar o sonho… - ripostou a mais idosa. -Pois não, mas só aquele que sonhamos acordados… Já não sonha acordada? -Eu não, eu não, meu senhor… Já lá vai a idade para sonhar acordada. -Calma… a idade é importante, mas eu, por exemplo, ainda sonho, se não me cortarem a reforma, que é pequena, deixar de esperar pelos autocarros para fazer a minha vida… Vou para a aldeia, tenho um quintal, cuido disso… - disse a outra. Volvi os olhos para o relógio e autocarro nem vê-lo… A conversa já tomara outro sentido… Tive que me inteirar do que agora as ocupava… Ah! Reformas, corte nas reformas… -Votam sempre nos mesmos… O Passos e o Cavaco têm a culpa. Não ouviu, não ouviu o homem a dizer que não mexia nas reformas… o outro a dizer que os mais idosos têm que ser protegidos? Tudo mentira, tudo mentira… ao meu homem já lhe tiraram muitos euros e ele só ganha… Meti-me, de novo: - Mas esse nível de rendimento está acautelado… Nessas reformas não se mexeu… Deve haver aí qualquer coisa que não está bem certa… - Sim, o meu homem tem duas pensões… numa não mexeram, mas na outra… Não há direito, eles comem tudo… dizem que nós comemos criancinhas… querem é assustar o povo… ficar lá para sempre, dar de mamar aos amigos, aos que chupam tudo… Vi o autocarro lá ao fundo… Cada um procurou onde se acomodar porque ele trazia muita gente de pé. Não tardou que vagasse um lugar e sentei-me ao lado duma senhora, toda vestida de negro, com um ramo de flores num saco que colocou no regaço… Conversamos sobre a morte, os sonhos sonhados, e o que acontece quando são sonhados a dois e um se vai embora… Vou andar mais vezes em transportes públicos!

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