quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Estado de alma...

Abro mão da privacidade e publico um «estado de alma»:
Juntámo-nos numa peregrinação às nossas origens como nunca antes sucedera! Calcorrear as calçadas onde demos os primeiros passos, fizemos as primeiras brincadeiras, as primeiras travessuras, foi emocionante! Foi triste que a casa onde nasceu a nossa mãezinha estivesse no chão, melhor, tivesse sido demolida! As memórias dos pobres, infelizmente, não se preservam... Mas nessa casa de trabalho, de gente honesta, estavam as nossas referências maternas mais próximas da nossa infância (mais minhas que tuas, que cedo passaste a estar mais tempo com os nossos avós paternos... Nas nossas missivas anteriores já falámos de situações diversas sobre esse lugar, o Seguro, junto à estação da CP de Rio Tinto... Agora, diante do espaço vazio, parece que parte do meu mundo desabou, desapareceu, parece irreal, fictício! A casa da nossa avó Conceição (eu não falo do nosso avô João porque não tenho memória dele, deve ter falecido antes da nossa mãe me dar à luz...), feita de pedra granítica, com uma janela e uma porta para a Rua, sem bem me lembro (ou só tinha uma porta que dava acesso às duas divisões da casa, o quarto, grande, e a cozinha de terra batida?), por onde entrava, em correria, sem bater. Depois tinha uma porta de saída da cozinha para o exterior, por onde se chegava à arrecadação, com caruma e lenha para o fogão, alfaias para tratar do quintal e outros utensílios do dia-a-dia, em particular alguidares para roupa, que se lavava no rio, e, mais acima, o poço profundo, donde se tirava, com sarilho, corda e balde a água que bebíamos. Parece incrível, mas, agora, a espaço aberto, parece que a casa da nossa avó era muito maior, o quintal muito mais espaçoso do que aquele espaço descampado que agora por ali se vê... É a nossa memória que está distorcida porque as dimensões do espaço sempre foram aquelas. Nós é que, infantes ainda, não tínhamos a noção exacta das proporções e a casa, sendo pequenina, mais parecia um palácio. Ah! Como me deu pena ver aquele quintal vazio (que já não é um quintal, tratado, semeado, plantado, florido como era no tempo da nossa avó...), sem a oliveira que fazia sombra para a boca do poço e donde colhíamos as azeitonas que depois se curtiam num velho cântaro de barro que - lembro-me bem! - estava atrás da grande porta da cozinha que dava acesso ao quintal, em cima dum banco de madeira, no qual muitas vezes metia a mão para comer as azeitonas, ainda no processo de maturação para poderem ser degustadas... Olha, foi por esses dias da infância, que aprendi a gostar dessas azeitonas miúdas, ácidas, que acompanham bem um côdea de broa... Naquele espaço vazio, os sinais já não eram os do interior da casa da nossa avó, cujo fogão, a crepitar desde manhã cedo até à deita, tudo enegrecia: paredes, telhado, móveis (poucos, uma velha mesa de maneira, uns banquitos e um armário, um lavatório de mãos, em ferro e pouco mais...). Eram mais sinais doutra gente, que ocupou o espaço e, com outros recursos e materiais, canalizou água, colou azulejos nas paredes, cimentou o chão... Sim, porque o quarto grande com mais do que uma cama (lembro-me da cama grande da nossa avó e a da nossa tia Mariana, quando era solteira) tinha o chão em madeira, já gasta, onde o andar, mesmo descalços, implicava um plof plof plof, um som dos pés a calcorrear a madeira assente em frágeis suportes, que mantinha a caixa-de-ar inferior para lhe garantir a durabilidade, penso eu, mas não sei muito bem. Viste como ali ao redor tudo está diferente: o que é antigo, do nosso berço, está velho, descoroçoado, nem parece o «bairro» antigo onde moravam as pessoas que conhecíamos, as pessoas do tempo da nossa avó, das nossa maezinha, das nossas tias, dos nossos primos.. O que é novo por ali não se identifica com os padrões das casas humildes, que tínhamos como nossas, os nossos palácios... e como é desolador ver outras casas por ali sem gente, sem a gente que nós conhecíamos pelos apelidos, porque nos batiam quando fazíamos maldades, ou nos traziam pelas orelhas à nossa a avó (a mim, que era bem traquina, e mandava os gatos para a linha do comboio...). Olha, querida irmã, passaram aquelas gerações e agora somos ali uns estranhos! Reparaste na conversa de surdos com a jovem que estava à janela na casa que foi vizinha da nossa avó, que já não existe, que foi demolida? Eu falava de pessoas de antigamente, que viveram ali; ela tinha uma vaga ideia de que uma pessoa de família teria uma ideia mais precisa das pessoas desses tempos! Mudou tudo, minha irmã, no momento em que no lugar duma casa onde comi o caldo feito das coisas da horta, que levava horas a cozinhar, naquele lume vagaroso a carvão (quanto carvão fui eu apanhar na linha do comboio para alimentar aquele fogão... eram as pedras que os fogueiros deixavam cair à linha quando mandavam pazadas de carvão para a máquina a vapor...), onde vi a roupa branca estendida para ser entregue no Porto, depois de lavada, a nossa avó atarefada, a nossa tia, doente, quase sempre definhada, dizia, mudou tudo: agora percebo melhor o que é o efeito do tempo na vida dos homens! Tudo é passageiro e nós, tu, eu, nós, estamos no caminho dos que nos precederam, nos trouxeram ao mundo e já só existem, em resquícios, na nossa memória.
Não volto mais ao Seguro! Sepultei naquele dia a vontade de reviver esse passado. Não há memorial, não há necessidade de voltar. Ficam as recordações que permanecem e que, passe o tempo que passar e enquanto tivermos essa faculdade, alimentarão o que somos por causa de termos ali nascido.
Do teu irmão que te ama».

Sem comentários:

Enviar um comentário