quarta-feira, 30 de junho de 2010

Tópicos a propósito da obra de Joaquim António Cartaxo Martins

ANGOLA
Memórias de um missionário


Ontem, de facto, foi um dia especial para quem se interessa pela missionação Pentecostal em Angola, realizada até 1975: no Auditório Agostinho da Silva da Universidade Lusófona foi apresentado o livro «Angola, memórias de um missionário, de Joaquim António Cartaxo Martins».
Pessoalmente, depois de ter escrito Recantos do Mundo, O pentecostalismo em Angola – subsídios para a história das Assembleias de Deus, alimentei uma enorme expectativa em relação à obra e ao seu decisivo contributo para a compreensão do fenómeno, tantas vezes exaltado, que foi a evangelização dos pentecostais no Cuanza-Sul, nos anos cinquenta do século passado.
Lida a obra num instante (até à página 140, a leitura, para quem está motivado, é efectivamente empolgante e o leitor quer chegar rapidamente ao fim da narrativa…) a primeira conclusão é que ainda não estamos diante do documento que «ponha a nu», com factos, com indicação de fontes, com testemunhos, as razões sociopolíticas que subjazem à expulsão dos missionários, designadamente do autor, do Cuanza-Sul. São muito vagas as referências aos interesses malévolos do «Clero» (fundamento em que o missionário insiste, com razão, mão não é disso que se trata: queríamos situações concretas, que fossem outras, ou mais substancialmente enunciadas, diferentes das que, nós próprios, sem acesso a documentação particular, que sabemos existir e alguma dela aparece, agora, pela primeira vez, publicamente, na terceira parte da obra em questão), dos «Comerciantes» (é verdade que se faz uma referência ao presidente da CADA, a grande empresa agrícola do Cuanza-Sul, no âmbito da aplicação de medidas repressivas, mas sem explicitação dos motivos), dos interesses das «autoridades» em manter situações injustas nas relações de trabalho, comerciais, de acesso aos bens de educação, formação, culturais… Mas é pouco! É verdade que o autor escreveu um livro de memórias, não um ensaio ou um compêndio de história! Temos isso em conta. Mas considerando o que foi relatando ao longo dos anos sobre essa sua experiência missionária e a correspondência que trocou com os mais altos dignitários do Movimento Pentecostal em Lisboa, esperava-se a «prova da factualidade das coisas» já ditas e reditas, escritas e reescritas, durante mais de meio século.
Nesta parte, mantêm-se os desafios que deixamos em Recantos do Mundo aos investigadores, aos académicos, que é necessário ir mais longe, dedicar mais tempo ao tema pois as memórias dos protagonistas são elementos fulcrais, mas só com eles não se faz a história!
Depois, avançando na leitura, pode-se concluir que a missionária Pearl Stark teve um papel importantíssimo no trabalho realizado, mas, na obra, as referências que lhe são feitas são minudências em relação ao muito que a história lhe deve imputar, e a que, na medida do possível, tentei corresponder em Recantos do Mundo. De facto, na obra de Cartaxo Martins não há, a nosso ver, empolgamento na descrição do que foi a motivação da americana para iniciar o trabalho no Cuanza-Sul: ela, no íntimo, devia isso ao marido, morto pela malária, e que queria, antes da 2ª guerra mundial, iniciar trabalho missionário ali. Vê-se, claramente, em determinados passos da obra, que ela estava em Angola, no Chitau, mas com os «dois olhos» postos na terra da visão, que era o povo do Cuanza-Sul. Releva-se, de facto, aquilo que em tese nós já tínhamos em Recantos do Mundo enunciado: os meios financeiros eram americanos, mas não como as «autoridades políticas» suspeitavam – o sustento da missionária era para ela, para o missionário Cartaxo Martins e família e o resto era com trabalho que se granjeava.
Finalmente, nesta nota breve, há documentos publicados em anexo cuja justificação é, no mínimo, discutível. Não me parece que, para enaltecer o papel do autor Cartaxo Martins, já falecido, e do seu irmão Manuel, fosse necessário criticar, tão abertamente, sem uma mera tentativa de enunciar as potenciais razões, os missionários que chegaram ao Cuanza-Sul em 1970, imputando-lhe colaboracionismo com a polícia política da repressão e acções divisionistas. Aliás, o documento é de Abril de 1975, depois da queda do Marcelismo, e quando, em Luanda, imperava já a dinâmica própria dos aderentes do movimento de apoio ao poder popular. Não posso garantir sequer que a carta a fls. 315 -319 da obra teve algum efeito útil, uma vez que Daniel Ferreira, pastor oriundo do Brasil, como o tempo demonstrou, estava de passagem. Para quê publicar um documento, sem lhe justificar as razões, que apelida o missionário Reganha Pereira de «divisionista» e que admitia colaborar com a polícia política? Não tinha qualquer interesse, sendo certo que há um texto na obra em que o missionário Reganha Pereira declara estar sujeito ao controlo policial, enviando periodicamente o registo dos membros para esse efeito.
Os textos panegíricos do discípulo Francisco Cangira ajustam-se ao reconhecimento que ele revela pelo trabalho missionário dos Cartaxos, mas não se justificam por, fora de contexto, abalarem a credibilidade e exemplaridade do trabalho doutros obreiros levado a efeito em contextos diferentes (o que se diz acerca de Israel Cóias Pires, por exemplo, num dos textos de Francisco Cangira, sendo verdade - efectivamente, não era «vocação» dele ir ao encontro das pessoas nos musseques, nem viver em cubatas, ou «sujar as mãos» a lavrar a terra… quando muito valorizava os grandes cultos africanos em que também estivessem muitos não africanos, se é que esta distinção faz hoje algum sentido para os leitores... no fundo, era o culto dos pretos, dirigidos e orientados pelos brancos e, na lógica instituída, para Israel Cóias Pires não podia ser doutra forma). Ademais, a nosso ver, a propósito da dita fundação da Igreja Evangélica Pentecostal de Luanda (cf. pag. 143 e sgts), afirmar que o pastou Luís Campos Aço se comportou como um delator, causando graves prejuízos pessoais a Joaquina Martins, quando ele já não se pode defender (então dizê-lo em público, numa sessão solene, parece ser insensato...), e publicar a carta que um conjunto de pessoas, credíveis certamente, alguns dos quais foram meus amigos, lhe dirigiram não acrescenta nada ao que interessa relativamente à origem do trabalho pentecostal em Luanda, muito menos esclarece as questões dúbias que em Recantos do Mundo não fomos capazes de ultrapassar.
No mais, parece-me que o documento «está à discussão», sendo certo que isso não significa que o mérito da obra exemplar, abnegada, amorosa do autor, o meu querido amigo Cartaxo Martins e o seu irmão Manuel, colaborador da obra, possa ser beliscada, remetendo-me para o que, oportunamente, escrevi em Recantos do Mundo.

José Manuel Martins

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