sexta-feira, 25 de junho de 2010

ONTEM FOI ASSIM...

Ontem foi assim porque a vida dá muita volta e tinha que ser assim!
Ontem «encontrei» o pai dum homem quase quarentão e está na forja o encontro entre eles que celebrará esse acontecimento.
Ontem recordei os «horrores» da guerra, a acção dos militares em terra estranha.
No meu livro Zau-Évua, terra de ninguém, sítio de vivências anotei aspectos do relacionamento dos militares com as populações locais, em particular no que tange às mulheres. Longe de casa, do ambiente social e familiar em que se fizeram homens, os rapazes portavam-se, muitas vezes, indecentemente. Das acções menos dignas resultaram muitos meninos e meninas, que ficaram pelas aldeias e sanzalas, distinguindo-se pela cor morena da pele. Meninos e meninas quase sempre sem pai. Os pais deles fizeram as malas e rumaram ao puto para o espólio e para a nova vida. As mães, a maioria delas pobres, ficaram com o «opróbrio» da situação, quase sempre mal vista pelos mais idosos da s aldeias. Mas o nascimento duma criança tem sempre a magia do novo, da renovação, da vida que é prolongamento da dos que lhe deram a matéria genética.
Estávamos em 1970, no Norte de Angola, no Benza, ali perto da margem esquerda do Rio Zaire, não muito longe da Pedra do Feitiço. Por ali semearam-se muitas aldeia, com populações agrupadas ao longo da segunda metade da década de sessenta (em 1961 fugiram, uns para Luanda, outros para o outro lado do Rio Zaire), cujas crianças falavam mais francês que português, embora todas falassem o dialecto da região. Os militares traziam oportunidades de trabalho para as mulheres, que eram todas lavadeiras; os militares eram agentes sanitários, e as crianças beneficiavam disso… Em regra, era com as mulheres que se tratava de tudo e era também com elas que se mesclavam as sanzalas…
Ontem, uma menina de 16 anos deu à luz um menino mestiço. O pai tinha abalado; deixara rasto, mas a guerra (a colonial e a outra que se lhe seguiu, durante dezenas de anos) apagara-o. Quando soou na aldeia que os militares iam ser substituídos, a menina, ainda com 15 anos, apresentou-se no Quartel, com a prima mais velha, que esta sabia mais da vida e da língua portuguesa, de «barriga cheia». O suposto pai estava ali e ela não quis deixá-lo partir sem sinalizar a consequência das várias vezes que se envolveram na esteira.
Acabou a guerra, escreveu cartas o filho, clamou pelo mundo acerca do paradeiro do pai. O apelo genético, o apelo do sangue, agora mais intenso porque ele próprio gerou seis filhos, que queriam conhecer o avô. As diligências deram zero de resultado, as portas quase todas se fecharam. Veio a internet, o mundo ficou em rede, acabou a guerra em Angola, o rapaz recuperou alento, pesquisou… alguém lhe disse que eu estivera como militar em Benza. Fui em socorro dele e… encontrei-lhe o pai!
Ontem foi um dia feliz também para mim! Falta que os testes comprovem a ligação de sangue entre esses dois homens. O pai lembra-se que os militares à época não davam descanso às lavadeiras dos outros sempre que iam em operações demoradas para longe, no interior do mato. Só tem a certeza que teve aquela menina por mulher, que a possuiu, que podia tê-la engravidado. Tem a prova de que quem o procura é mestiço (de raça mista como nos Bilhetes de identidade angolanos se consigna…), mas a menina pode ter sido seduzida (ou violada, ou comprada) por outros militares na ausência dele e por quererem mudar de «lavadeira». Só o teste dissipa essa dúvida. Ontem confirmou-me que o fará. Não sei ainda se o homem que o procura como pai quer arriscar o resultado… Vou estar entre os dois, ligando o ontem de guerra com o hoje de paz, dois países, uma língua, uma história comum… Ontem decidi que quando as pessoas assumem as suas responsabilidades, sem receio das consequências, abrem caminhos novos para um futuro promissor, mesmo que não venham a vivê-lo como pai e filho… tudo depende do que ditar o teste!

José Manuel Martins

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