segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Hoje vi sovar um cão

Hoje vi sovar um cão! Dir-me-ão: «Mas isso é comum!». Pode ser, mas não me lembro de o ter visto antes… Ou pelo menos, para ser mais verdadeiro, nunca o tinha visto como hoje vi. Talvez porque tenha andado distraído, talvez porque encare o relacionamento com as animais de forma preconceituosa, distante, quiçá admitindo que ele é apenas útil, e nem sempre os relacionamentos (até entre seres humanos…) são úteis.


Às vezes dou comigo a pensar na energia emocional que se «desvia» das relações úteis entre humanos para relações com animais, uns de estimação, domésticos, outros nem tanto, às vezes tirados directamente da selva, onde são ferozes e vivem tranquilos…

Talvez o preconceito resulte daí: «Ah! Tanta gente sozinha, abandonada, sem carinho, sem um tecto, um abrigo, uma roupa quente, um caldo frugal… tantas crianças sem eira nem beira, nas ruas, institucionalizadas (com sorte, pois aí tomam colos por empréstimo…), sem futuro (têm-no, sim, mas é quase sempre triste…), ninguém as vem buscar, ninguém as adopta (são negras, ciganas, crescidas, diminuídas física ou mentalmente… Mas não faltam exemplos de cães, gatos, outros bichos, aos quais não falta nada disso e têm futuro (às vezes para além da vida dos seus donos ou benfeitores, que lhes deixam o pecúlio para continuarem a fruir a vida abastada que sempre tiveram…)». Não é demagogia! Todos os dias (ao lado dos milhares que vivem abandonados, à mercê do que recolhem nos caixotes do lixo humano, assemelhando-se, na falta de sorte, a alguns humanos…), aqui ou noutro quadrante do mundo avançado, damos com os casos de sucesso, de vida boa, e lá vão eles, ao colo, de carro, de avião, sempre cómodos, elegantes, bem trajados, cães, gatos, outros bichos, provocando o espanto geral.

O dono batia-lhe sem dó nem piedade, em plena via pública! Digo dono porque o cão submetia-se à tortura, não reagia, ficava sob as pancadas, os pontapés numa atitude passiva, incompreensível se o agressor fosse um desconhecido (havia de lhe ladrar, arreganhar os dentes, mostrar o focinho com ferocidade…). Alguma asneira tinha o cão feito. Mas as asneiras dos cães não se castigam a pontapé. De passagem, registei o olhar do cão: inocente, talvez a pensar no que provocara a fúria do homem… Afinal, só terá feito o que é da sua natureza, o que foi capaz de apreender para corresponder às expectativas do dono. Não terá tido oportunidade de apreender que outra era a atitude esperada.

Fosse o que fosse que o cão tivesse feito, é desumano bater num cão! Se se adopta, é porque se ama. Quem decide ter um cão, tem que saber amá-lo. E amar um animal dá muito trabalho (como, em geral, o amor dá muito trabalho; não se ama apenas com palavras; nunca se ama com violência…).

Lembrei-me de John Grogan e o seu cão Marley. Talvez por conhecer essa história de amor (Marley & Eu – A vida e o amor do pior cão do mundo) reparei no cão que encaixava pontapés e murros, sem se queixar, em plena via pública, exemplificando uma relação condenável. Terá o cão desobedecido ao dono, e por isso foi agredido? Não foi civilizado e borrou as escadas, largando a carga antes de chegar à via pública (um dono que bate assim no cão, não se importa de deixar «presentes» na via pública; não os quer é em casa, ou à porta de casa…). A expressão «serena» do cão, apesar da pancadaria, queria dizer que «não teve culpa, foi sem querer», tivesse feito ele o que tivesse feito em desagrado do dono. Nos olhos viam-se sinais de tristeza (de dor também…), mas atitude era conformada: não se atirou ao dono. Mas ele merecia ser mordido, nos pés, nas mãos, em todo o lado; uma mordidela por cada pontapé, por cada soco.

Não gosto de cães em casa, dentro de casa! Dão muito trabalho, exigem muita atenção, roubam-nos a liberdade, limitam a nossa acção. É uma atitude tão legítima como qualquer outra, aliás, mais aceitável do que a atitude daquela pessoa que traz seis ou mais para casa e depois deixa-os, aos uivos, o dia inteiro, fechados dentro de quatro paredes, a incomodar quem está em casa e vive por cima, por baixo, ao lado… Depois dá confusão: a vizinha não gosta, reclama, engalfinham-se na escada, em frente ao elevador, cada uma puxa os cabelos à outra, vão para a esquadra, para as urgências do hospital, para o Tribunal. Mas ter animais em casa, para muitas pessoas, é benéfico, compensador, alternativa (às vezes é mesmo opção: «quanto mais conheço os homens, mais gosto dos cães») à convivência com outras pessoas. Não parece natural, mas é assim: «quem não tem cão caça com gato», ou seja, se não sou capaz de socializar com gente, socializo com animais. Opções. O que não é admissível é fazer sofrer os animais, apregoando que se gosta muito deles. Veja-se o agressor de que falo: o cão deve ser o «ai Jesus lá de casa», mas tem que se portar bem, senão… porrada nele!

Sem os animais a Criação não faz sentido. Sem amor aos animais perde-se o sentido da Criação. Amar, porém, não implica «trazer para casa», para debaixo do mesmo tecto. Amei o cão que vi sovar e sofri por não poder livrá-lo da tortura. Mas não me passou pela cabeça arrebatá-lo das mãos agressoras e trazê-lo para casa. Como tenho sofrido por ouvir latir na ausência dos donos, estando as portas fechadas, por ser semelhante a tortura (ficar só horas a fio na expectativa que o dono meta a chave à porta deve ser pior que viver na rua, à mercê dalguns energúmenos…). O pior sofrimento é, porém, vê-los morrer, ainda que seja de velhice…

Não se pode tratar mal os amigos. Tratar bem os amigos dá trabalho. Vê-los partir é doloroso… em especial se forem da nossa «família». Um cão que está debaixo do nosso tecto é da nossa família.

Por egoísmo, nunca dei um cão à minha filha… Teria de tratá-lo tão bem como a ela…

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