sábado, 1 de agosto de 2009

Veneno agridoce (parte seis)

No jardim das orquídeas o ar que se respirava naquele dia era um misto de odores de cravo, de rosa, de jasmim, açucena e dedal de dama. Esse odor indefinível, mas agradável, sobrepunha-se aos demais, exalados das flores à volta, umas bravas, outras que passavam por não sê-lo… O ar quente do levante, naquele fim de tarde, agitava ligeiramente as plantas que coloriam o jardim das orquídeas, que soltavam, a cada movimentos, odores ainda mais intensos…

- Papá, o teu perfume é muito agradável – disse o jasmim ao cravo.

O cravo ouviu, enlevado, o elogio. Fora ele o pioneiro daquele jardim, que começara a verdejar em terras onde já tinham sido lançadas sementes de ervas úteis e de plantas de embelezamento. Não emergiu ao acaso. Trouxeram-no para aquela terra com raízes já lançadas, sólidas, capazes de resistir às agruras da adaptação, do florescimento, da reprodução. Bastou introduzi-las na terra e começou logo a desabrochar, em pétalas vermelhas, fazendo lembrar paixão, liberdade… Ah, como foi difícil a luta contra as ervas daninhas, que estendiam as suas raízes tentaculares, parasitas, querendo sugar-lhe as substâncias que lhe coloriam as pétalas, depois das raízes se terem agarrado definitivamente ao solo. Não desistiria de abrir espaço ao seu jardim, dele, da rosa, do jasmim… da açucena e dedal de dama cujas sementes lançariam à terra. Venceu-as expandindo o sentido da liberdade que trazia sempre no vermelho das suas vestes; paixão pelas flores do jardim, do seu jardim restrito, mas também das plantas que se foram avizinhando e trocando pólen, confundido os odores próprios com os da vizinhança, numa irmandade quase perfeita, como parecendo um só jardim. Paixão para servir, mas servir em liberdade, era lema do cravo que em situações adversas levantava muros e declarava: «O jardim das orquídeas fica antes do jardim público de acesso a todas as plantas!»

As plantas foram-se habituando e sabiam que não podiam estar no jardim das orquídeas para impor o seu próprio odor, a sua própria beleza, os seus projectos… Não! Aproximavam-se, ficavam e relevavam a beleza dele. Pertenciam-lhe enquanto realçavam as cores do cravo, da rosa, do jasmim, da açucena, do dedal de dama… Há plantas assim: para se embelezarem partilham a beleza doutrem… o desastre acontece quando o feio se passa por bonito exibindo a beleza que a outrem pertence! Ah, são as ervas daninhas que se embelezam por estarem no jardim das orquídeas, mas depois destilam o veneno agridoce do sucesso: «Não precisamos delas, já temos beleza própria!» Ah, acontece assim com as plantas espinhosas que, antes, feriam por nada, depois ficaram inofensivas e agora, pressupondo já mandarem no jardim das orquídeas, espetam espinhos traiçoeiros no dedal de dama, querendo mal ao jasmim, ou não lhe tolerando a fragrância, a permanente fragrância, que se cheira já noutros jardins…

Mas sem a rosa o cravo não se teria feito o jardim das orquídeas. Ela era mais inclusiva, encolhera os espinhos, baixara as guardas, permitira que o cacto e a erva daninha se introduzissem no jardim, tratando-os como se fosse o cravo, ao primeiro, e como dedal de dama, a segunda. Podiam comer das iguarias do jardim das orquídeas, levar de lá o odor das plantas regadas, floridas, bem tratadas… Ah, bem diziam as outras plantas que o cacto e a erva daninha passaram a cheirar melhor depois que lhes franquearam o cravo, mais a rosa do que o cravo, as portas do jardim das orquídeas… O cacto ficou mais sábio, falava melhor a linguagem dos cravos; a erva daninha ficou vistosa, quase parecia rosa de jardim…

- Meu filho jasmim, planta de brancas e perfumadas flores, o teu odor atrai os de fora, atrai as atenções para o nosso jardim! E vais-te embora, jasmim… O odor do cravo vai sobressair mais agora, atraindo mais atenções por falta daquele que aqui exalas… Mas há outros jardins onde te plantarás para atrair muitas flores e misturar com o delas o teu odor… Vai, filho, oferece-te em declaração de amor a todas as flores que encontrares… sim, a todas… tens isso dentro de ti, o dom de atrair pela declaração de amor… Vai, mistura-te no que as outras plantas bebem e dá-lhes o teu odor agradável, único, diferente… Vai, deixa que cuidem de ti: põe-te ao Sol, bebe a Água, deixa que te podem as excrescências…

O cravo via já o filho plantado noutro jardim, declarando o amor, libertando as outras plantas da impotência, do marasmo, da insónia, da ansiedade… afinal reclamaram as plantas doutro jardim a fragrância do jasmim, deste jasmim, feito dos cuidados do cravo, da rosa, tão disponível e livre como o cravo, tão sensível e amigo como a rosa…

-Hum… – a erva daninha, que crescera para dentro e para fora do perímetro do jardim das orquídeas, e comia ora fora ou dentro, estava naquele dia de vento morno e quente à sombra duma árvore que protegia as plantas do jardim das orquídeas… – hum, não estou a gostar do que ouço… afinal o cacto não é que causa impressão a quem vem ver o jardim!? Muitos nem sequer se apercebem do cravo, da rosa…. Não chegam ao jardim das orquídeas… Tiveram, agora não têm significado na beleza do jardim… o cacto, que esconde os espinhos, que se tornaram flexíveis, mas ágeis como punhais, é a referência do jardim: domina pela bondade, tendo os espinhos recolhidos, domina pelo terror, mostrando-os a quem quer conhecer melhor as outras flores… Não. O que essa vaidosa dedal de dama anda para aí a fazer, reclamando-se lídima representante do jardim das orquídeas e querendo orquestrar as plantas que estão no jardim maior para evidenciar o odor do jasmim põe em causa o estatuto do cacto!

E foi dali, vertendo os odores antigos, de erva daninha que nunca deixara de ser, embora mitigados pelos odores do cravo, da rosa, mais da rosa que do cravo, lambuzando-se no veneno que retivera nas estranhas encobertas: agora é que se vai ver se o poder não pertence mais a quem rasteja e lambe o pó do que a quem se eleva e levanta as pétalas coloridas e exala odores que atraem… O agridoce do veneno à vista: o jasmim pode ir declarar amor, mas o jardim não será mais como dantes…

(continua)

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