segunda-feira, 27 de julho de 2009

Veneno agridoce (parte quatro)

«Está? Sou eu, a H…».

«Olá, como está, H?» …

«Nem por isso… quer dizer… olhe, não dormi a noite inteira a pensar em si… bem, a pensar no local onde ficamos de nos encontrar…. Enganou-me, sabe!?...»

Nessa manhã, quando recebi o telefonema de H. estava a preparar a minha participação numa audiência de conciliação no Tribunal Cível de Lisboa. O representante legal da minha constituinte, por razões pessoais, não poderia estar presente. Ficara combinado que H me levaria o original da procuração com poderes para confessar, transigir e desistir na demanda, condição necessária para evitar as burocracias da justificação da falta do dito representante. Combinara com H o local e a hora, porém, enganara-me acerca do local… A explicação é simples: durante muitos anos, para mim, ir ao Tribunal a Lisboa implicava deslocação ao Tribunal da Boa Hora (se o assunto era do foro criminal) ou ao Palácio da Justiça (se a matéria era do foro cível) … Tínhamos combinado no Palácio da Justiça, só que na notificação dizia que o Tribunal ficava na Rua Mouzinho da Silveira… Não condizia uma coisa com a outra, a «bota não batia com a perdigota»!

H tinha razão e ainda bem que pensou nisso a noite toda! Doutra forma, em cima da hora, teríamos de vir do Palácio da Justiça para a Mouzinho da Silveira… nada que não se fizesse descendo o Parque Eduardo VII até ao Marquês do Pombal, a pé ou de táxi, ou descendo a Marquês da Fronteira até ao El Corte Inglês, apanhando aí o Metro até ao Marquês de Pombal… Coisa pouca, mas suficiente para tirar o sono a quem costuma chegar sempre a horas e pensava que estava a ser… enganada!

Desfeito o meu equívoco, 15 minutos da hora marcada, lá estava H, à porta do edifico onde funcionam os Tribunais Cíveis de Lisboa (agora no Palácio da Justiça funcionam as Varas Cíveis… estas mudanças só são imediatamente perceptíveis para quem trabalhava nesses Tribunais assiduamente, o que não é o meu caso há cerca de 10 anos…), com o documento. Palavras de circunstância para agradecer o empenho e competência de H, para dizer que podia voltar ao trabalho, que não era preciso mais nada pois do resto trataria eu e, depois, daria conta do resultado ao representante da entendida para quem H trabalhava e eu ali representava… «Mas nem um cafezinho podemos tomar?» H queria conversar, mas eu estava já concentrado no que ali me levava… «Não, não dá tempo… vou subir, faltam uns minutos para a hora marcada…» – disse-lhe para a desencorajar. «Eu posso esperar…», insistiu. «Mas a questão pode levar tempo a discutir, o juiz pode atrasar-se, podem acontecer outros contratempos e não me despachar senão lá…» – fui dizendo enquanto H não me interrompeu levando a conversa completamente para fora do contexto: «O meu ex-marido fez tudo para me prejudicar… até a casa me roubou… eu acho que o senhor doutro foi o advogado dele…». «Alto lá!», disse eu. «Que conversa é essa? Já não vejo o seu ex-marido há séculos, nem sequer soube que se divorciaram…». E pronto. Ali no hall do tribunal, os minutos a passarem, lá tive que desfazer um equivoco com cerca de 20 anos… A questão é que nos últimos 6 anos tenha contactado muito com H por razões ligadas à minha actividade investigatória como escritor mas, especialmente, ao patrocínio e assessoria à entidade para quem trabalha. Ela teve, em melhores circunstâncias, dezenas de oportunidades para esclarecer essa questão que a «envenenava» há tanto tempo! Tratava-se duma suposição dela assente no facto de eu conhecer o ex-marido e ser… advogado! Imaginem uma mulher que se considera «roubada», que durante 20 anos guardou essa convicção e que agora tinha, em pleno átrio dum Tribunal, o advogado que ajudara o «ladrão» a ficar com o produto do «roubo»! Terrível! Mas ainda há pessoas a viver assim, amarguradas pelo «veneno» que ingeriram e preservaram, em reserva suficiente, para morrerem «envenenadas» ou «matarem» alguém num momento qualquer…

H ficou convencida, pelas breves explicações que lhe dei, que nunca tive nada a ver com o assunto deles e que vivia num equívoco antigo sem necessidade: há muito que podia ter-me interpelado sobre o assunto! Afinal, por detrás da simpatia do dia-a-dia, da solicitude para atender às minhas solicitações de carácter profissional, estava a «fermentar» um veneno letal, não fora o «doce» da minha reacção, admitindo que, por suposição, alguém pudesse estar errada tanto tempo, mas sem maldade, sem querer «matar» ninguém além de si própria…

Não pediu desculpa, mas pediu-me que, um dia, lhe dê um pouco mais de atenção para explicar por que «bebeu» o veneno e o alimentou tanto tempo. Ficou prometido.

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