sexta-feira, 24 de julho de 2009

Veneno agridoce (parte dois)

O que em abstracto reflecti pode concretizar-se «em rostos», «atitudes», situações vividas, umas vezes com surpresa, outras à revelia de toda a normalidade nos relacionamentos, afinal inquinados, envenenados.

Um dia o M disse-me: «Há muito que ando para dizer-te que estou magoado contigo…». De facto notara, durante muito tempo, um certo distanciamento, às vezes até alguma frieza, nas atitudes de M no nosso círculo social e familiar. Levava isso à conta do stress profissional, dalguma desilusão em relacionamentos concretos, alheios ao nosso, pois ouvia-lhe dizer, cada vez mais repetidamente que «quanto mais se relacionava com gente, mais gostava de cães…». Afinal, conhecíamo-nos há décadas, estávamos vinculados (aparentados) por afinidade, gerira-lhe interesses patrimoniais com êxito, nunca existira entre nós a mínima questiúncula que logo não ficasse resolvida, sanada… Ninguém desconfia dum amigo que comeu connosco à mesa, com quem confraternizou milhentas vezes, em relação ao qual existe um dever recíproco de perdão por razões ideológicas. Pensava que a mentalidade de ambos, por ser diferente, era garantia suficiente de que, a haver mal entendidos, nada perturbaria o relacionamento. Estava errado.

«M, magoado comigo!?» – exclamei, interrogando-o e interrogando-me. Foi surpreendente aquele momento. Mas, em simultâneo, ocorreu-me que fizera tantas vezes esta pergunta: «Algo se passa com o M pois, sendo correcto, simpático, solícito traz nos olhos um brilho embaciado, uma tristeza latente, uma mágoa qualquer…». Seria isso mas em resultado doutros insucessos, doutros relacionamentos, nada connosco pois, conscientemente, nada acontecera que nos pudesse distanciar. Quem está assim convencido normalmente deixa o tempo passar, que ele é quase sempre curativo, balsâmico, à espera que a normalidade volte por ela. Está errado! Devemos ao outro, ao nosso amigo, que amamos como irmão, uma atitude mais proactiva, mesmo quando não temos consciência que lhe devemos um gesto reparador, uma explicação sanadora. «Mas porquê, posso saber?», foi a reacção imediata.

Entre nós existira sempre o à-vontade da familiaridade de dezenas de anos de relacionamento, da disputa de muitas opiniões divergentes, da conflitualidade de gostos, sensibilidades e preferências respeitáveis. O nosso relacionamento era fraterno, sem mágoa! Mas, afinal, entrara uma «areia na engrenagem», que há muito vinha a prejudicar a dinâmica do nosso relacionamento, reduzindo-lhe, paulatinamente, o rendimento e aumentando-lhe o ruído…». Que fizera ou dissera para o magoar?». Passam-nos pela mente cópias de vários filmes: uns que vivemos, e em cuja trama pode estar o sinal da mágoa, outros que imaginamos, onde, hipótese sobre hipótese, vamos descobrir o que supomos ser a razão da doença… Se não registámos, no momento, o «vírus» que gerou a mágoa, não é rebobinando a filme que o descobriremos; se lhe tivéssemos dado vida em consciência, fácil seria: «em tal dia, em tal lugar, diante desta e daquela pessoas, por isto e por aquilo, eu disse isto, fiz aquilo…». Mas não, estávamos de consciência tranquila, sinceros como sempre, sem reserva mental ou hipocrisia.

«Lembras-te? Um dia, em tal sítio, perguntei-te se pagavas o café e tu disseste que sim mas… só se fosse com veneno…». Fiquei boquiaberto, mas não neguei. Podia ter dito, mas não me lembrava; se o disse, o contexto teria sido humorístico, irónico, estaria relacionado com algo que a mim me sugeriu a frase, mas que a ele escapou completamente. Um amigo magoado, melhor, envenenado, por causa do que disse (disse?) sem qualquer intenção ofensiva… Ah! Não há nada pior que termos um amigo magoado connosco! Aprendi que podemos envenenar uma relação, vivê-la doentiamente, porque deixamos prevalecer o agridoce do veneno, até uma dia… Neste caso, a tempo de tomar o medicamento e curar a doença corrosiva, dinamitar a bomba antes que ela explodisse e fizesse maior mossa fora do nosso círculo relacional.

Admiti a culpa, pedi desculpa e, agora, somos ainda mais amigos, mais irmãos!

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