segunda-feira, 15 de junho de 2009

Mecânico por vocação

Deslumbrara-o a fácil vida dos últimos trinta dias … O sol despontava cedo, a cidade bulia intensamente, as mulheres aperaltavam-se com pouca vestimenta, a cerveja vinha pelo seu pé, vinha sozinha, vinha em grupo, escorrendo, em gotas geladas... inspirava o ar quente com que amanhecera o dia ou caíra a noite… Andara por ali, de explanada em explanada, com vista para o mar ondulado, para o mar calmo, a olhar o Atlântico, a contemplar a baía, deixando-se embalar pela luz do sol reflectida na terra vermelha das escarpas por detrás do porto, enquanto ouvia sinais sonoros dos navios em chegada e partida… Escutara meio mundo. A cerveja e os que com ele quiseram sentar-se para degustá-la fizeram o seu mundo nesse enlace luandense, inopinado, mas que parecia estar-lhe escrito no sangue…

Convencera-se que passaria ali, nesse bem-bom ocioso, os dois anos da sua comissão militar. Apagaram-se os receios da guerra, das consequências dela. Sol, praia, mulheres, sempre de pouca vestimenta, cerveja, cerveja, sim, sim, bem-bom ocioso… Mesmo quando os convivas de circunstância eram militares, a guerra, se a faziam, era noutro mundo, noutro planeta. Não se iludia, pois esquecera ao que viera…

O Zé Luís saíra da escola, lá nas Beiras, aos doze anos, depois de concluir os primeiros dois anos do curso industrial. Nascera por ali, numa aldeia donde, com um olhar, atravessava a fronteira, e os pais queriam fazê-lo engenheiro. Mas as letras, as letras… o rapaz só se interessava por mecânica, por automóveis, que faziam o seu encantamento. Não dera com o estudo da língua pátria, da história, do francês. Fecharam-se-lhe as janelas da engenharia, mas não as da mecânica automóvel! Por sua conta, muita curiosidade, muita alegria, com a paciência e disponibilidade do tio, sucateiro de ofício, desmontou e montou tudo quanto era motor de carro acidentado, viu-lhes o interior, as divisões, as peças, o funcionamento… Os modelos novos das marcas que vinham de França, da Inglaterra, da América apareciam rapidamente por ali, na sucata… Uma curva mais apertada, já está! Um novo motor, nova tecnologia, desmonta, monta, o Zé Luís estava pronto para competir com os mecânicos da marca…

As divisas de furriel que ostentava, nas raras vezes que se fardava, e a boa vida eram compensações devidas a esse talento natural. Tudo começara ainda na recruta. Na noite em que o capitão resolvera dar-lhes instrução, ao luar, desempanou-lhe o carro de comando (o capitão não vinha preparado para dormir ao relento e foi um alívio quando ouviu o motor a roncar, à mão do recruta). Tinha boa compleição física, era educado, gostava de conviver e…de mecânica. Transferiram-no para o curso de sargentos, no quartel ao lado, por mérito do capitão, que o fez seu impedido… Não passara um dia inteiro desde que desembarcara e já o capitão, agora major, o convocava com uma proposta muito concreta: «Ficas aqui como chefe do parque -auto. Mando outro atirador em teu lugar…». De novo a mecânica a dar voltas à sua vida. Nesses últimos trinta dias desempanara o carro da mulher do major, da filha, do genro… Coisa fácil. Ficava com tempo livre, vivia solto, bebia cerveja, esquecera o destino, que era a guerra lá no Norte, no mato inóspito. E bebia cerveja, o tempo quente pedia, os dias livres também. A mecânica a e cerveja, a cerveja e os carros, simbiose que o fazia feliz.

A boa vida acabou, a cerveja não. Acelerou de mais, feliz, o descapotável da filha do major. A temperatura quente, a cerveja fresca, o ar a afagar-lhe o rosto, o ouvido sintonizado com as rotações do motor, a avenida larga… Pum! Estampara-se nas barbas da polícia. O major bem queria, mas não pôde mantê-lo no impedimento. Só parou no Leste, para atirar ao inimigo, para isso fora instruído, não para tratar de motores de automóvel! Agora bebia para esquecer a boa vida, o bem-bom. Por pouco tempo. Até ter oportunidade de mostrar que a mecânica lhe estava no sangue. Bebia com todos, celebrava por tudo, trazia as viaturas operacionais, caíra nas boas graças do comandante… De novo chefe do parque-auto, o atirador!

Ontem o Zé Luís deu entrada, pela mão dum amigo de sempre, no abrigo dos sem-abrigo… Pelo próprio pé inseguro, cambaleante… Tremiam-lhe as mãos, mas o rosto iluminava-se e os olhos brilhavam quando inclinava a cabeça para ouvir o som dum motor em andamento… Dissera ao amigo, há pouco, no trajecto: «Precisa de afinação, precisa de afinação… O motor é bom, mas precisa de afinação…».

Não voltara à vida boa da cidade onde foi tão feliz por trinta dias. Deixara o Leste e andara pelo mundo a consertar motores… a beber cerveja… Dormira no catre, antes de dormir na rua. Não por maldade, ou por ser criminoso. Por bondade, que a cerveja punha a nu. Feliz com ela, deu a assinatura num cheque, pôs lá a da companheira, foram ambos presos preventivamente por maldade de quem lhe pediu para caucionar um senhorio… O amigo tirou-o do catre, demonstrou-lhe a bondade, mas não o livrou dela, da companheira desde o tempo em que foi feliz por trinta dias … Agora levava-o da rua, determinado a tirar-lha. Alimentava o sonho de lhe manter viva a vocação enquanto, um dia de cada vez, lhe matava a companheira, ainda loira, apetecível, que o impedia de ser… mecânico!

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