Pareciam gémeos, não por se assemelharem nas feições, mas por ambicionarem muitas coisas do mesmo jeito… Eram capazes de se apaixonar pela mesma mulher, vestir a camisola do mesmo clube, encontrar a mesma roupa em locais diferentes, descobrir o mesmo after shave… Não nasceram no mesmo dia, mas andaram juntos na Escola Primária, lá na Beira Alta, onde o Sol, que entrava na Aldeia, virada a Leste, saído do outeiro que lhes roubava as vistas do horizonte raiano, lhes crestou a tez. Foi já na Universidade que tomaram ambos a decisão de chumbar no segundo ano para se alistarem no exército… e coube-lhes defender a Pátria em terrenos que nenhum desejava…No regresso estiveram na aldeia só de passagem, o tempo suficiente para dizer: - Adeus, viemos galardoados, com medalha de mérito de bom serviço prestado à Nação, e já temos emprego nos Correios, na mesma estação, a fazer a mesma coisa, em Lisboa...
Decorrera apenas o tempo suficiente para tomarem consciência que podiam melhorar a sua condição social concorrendo ao Instituto de Crédito do Estado, onde tinham pela frente carreira bancária, específica mas bancária…Foram juntos, estiveram na mesma «tumba», «lamberam» os mesmos papéis, arquivaram-nos no mesmo sítio, saíram para almoçar e entreter o tempo sobrante, calcorreando a Rua Augusta, ora subindo para o Rossio, ora abeirando-se do Tejo…Eram gémeos na dedicação e gizaram a paixão de chegar longe na carreira. Aos colegas parecia que tinham combinado o dia de morrer e que comprariam o jazigo na aldeia em comum e sem determinação de parte ou direito e ali permaneceriam, em memória para os vindouros, como símbolo de união.
Tinham subido na carreira, ambos classificados «Muito Bom» no concurso a que se submeterem por acordo…Antero queria o que o Antonino queria, e o inverso era sempre verdadeiro. Faria alguma inveja tanta afinidade a quem os conhecia. Augurava-se que ambos seriam, um dia, nomeados administradores…Aliás era essa a sua meta desde que mereceram o reconhecimento público no primeiro concurso a que se submeteram e denunciavam-na através do afinco com que estudavam, extra horário de trabalho, os «dossiers do sector» como se fossem chamados a decidi-los no dia seguinte!
Eram seis da manhã. O Outono já se instalara e o ar frio desaconselhava o Antero a ficar à espera do carro do Banco, pronto apenas paras as oito horas, hora marcada para a chegada do avião de Madrid. Tomou um táxi e sentou-se no banco traseiro.
– Bom dia! Leve-me à João XXI… – disse, com voz cansada, ao motorista, que, agarrado ao volante, pela voz reconheceu-o e enfiou, de imediato, ainda mais o boné e ajeitou a gola do casaco, sem responder…
Era o Antonino! Recordou-se, enquanto percorria, veloz, as ruas da cidade desertas, do dia em que divergiram pela primeira vez: Viera a revolução e o Antero decidira filiar-se e dar a cara, no auge do processo, pelo projecto de mudar as relação laborais, conferindo a direcção da Instituição aos trabalhadores, num assomo de militância ao serviço do povo, quando ele, Antonino, premonitório, após a eclosão dos movimentos antagónicos, onde se agruparam os amigos comuns, cada um segundo a sua opção ideológica, lhe havia dito que sonhara terem--se separado porque o seu destino era ser independente… O Antero, desde então, «deu-se à causa» e adaptou-se ao movimento da onda: ora lhe subia à crista, se havia agitação, ora flutuava, se os ventos amainavam… Diz-se que, por causa disso, ascendeu na carreira. Mas é seguramente inveja porque competência e vontade não lhe faltavam… O certo é que, nesses tempos, ao local de trabalho só comparecia em «actos de representação dos trabalhadores», sempre para declarar, ufano, os ganhos da luta contra o capital e as forças reaccionárias. Em boa verdade, nessa época, motivava-o muito mais o propósito de concluir o concurso que deixara no segundo ano para ir à tropa com o Antonino...
Parou o carro, lentamente, e deixou o Antero à vista do porteiro que, com vénia, lhe facultou a entrada, mantendo a luz frouxa do hall quando os demais trabalhadores ainda estavam a caminho, apinhados nos transportes públicos ou prisioneiros no IC 19 ou na A2… Mas antes, no momento da devolução do troco, o Antonino afastou o casaco, levantou o chapéu, e olhou, infeliz, o Antero, que o reconheceu.
Agora era tarde. O Antonino persistira, durante quase três décadas, arredio à filiação… Tivera na mão a inscrição que o amigo lhe assinara em branco. Há dez anos que aquele passageiro era administrador, primeiro delegado, não executivo, em empresas satélites, e presentemente administrador da confiança do presidente do Banco, que fora, também, militante daquelas causas… Vociferou, de modo quase audível, enquanto cerrava os dentes de raiva. Afinal, o «irmão gémeo» saíra-lhe teimoso… Bem podia ter feito o mesmo percurso e ser administrador como ele, cumprindo-se o desígnio que os unira. Agora, coitado, fazia de motorista de táxi para completar a pensão de aposentação irrisória, que os cinco anos entretanto decorridos degradara…
Aquele encontro inesperado abalara-o. Não deixou de pensar no Antonino enquanto alinhava os tópicos da exposição que faria nessa manhã quando o conselho de administração se reunisse. Queria impressionar os seus pares, argumentando que era o tempo de aquisições e fusões no mercado ibérico… Não logrou, porém, a melhor concentração, encerrado no seu gabinete de trabalho.
-Infeliz! – desabafou a dado momento, ainda impressionado com o encontro fortuito da madrugada. E, no íntimo, pensou que bem podia o Antonino ter ascendido ao seu lado e estar agora no apogeu do percurso…
- Motorista de táxi!... – exclamou em surdina.
Vieram-lhe à mente as dificuldades por que passava o Antonino… afinal, aposentara-se quando os dois filhos estavam a concluir a Faculdade e não fizera bem as contas pois, doutro modo, teria sobrestado o momento da aposentação, em que começou a perder rendimento… Misturando números e sopesando argumentos sobre aquisições e fusões sobreveio-lhe à mente, quando a situação do amigo se relevou de novo naquele emaranhado complexo de raciocínios, uma proposta que tinha deixado em «banho-maria» e que lhe fora apresentada pelos representantes dos trabalhadores, que mantinha em grande conta e estima, e releu-a…
Antes de concluir os tópicos da exposição que estava a preparar, despachou sobre tal proposta: «Estude-se, quantificando os custos financeiros duma actualização extraordinária das pensões, sugerindo-se ainda a fórmula de actualização anual que impeça a sua degradação tendo por parâmetro o aumento médio dos salários dos trabalhadores activos».
Era o mínimo que podia fazer para preservar a memória do percurso que fizeram juntos…
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