domingo, 14 de junho de 2009

Ficam sempre alguns laços...

Pareciam gémeos, não por se assemelharem nas feições, mas por ambicionarem muitas coisas do mesmo jeito… Eram capazes de se apaixonar pela mesma mulher, vestir a camisola do mesmo clube, encontrar a mesma roupa em locais diferentes, descobrir o mesmo after shave… Não nasceram no mesmo dia, mas andaram juntos na Escola Primária, lá na Beira Alta, onde o Sol, que entrava na Aldeia, virada a Leste, saído do outeiro que lhes roubava as vistas do horizonte raiano, lhes crestou a tez. Foi já na Universidade que tomaram ambos a decisão de chumbar no segundo ano para se alistarem no exército… e coube-lhes defender a Pátria em terrenos que nenhum desejava…No regresso estiveram na aldeia só de passagem, o tempo suficiente para dizer: - Adeus, viemos galardoados, com medalha de mérito de bom serviço prestado à Nação, e já temos emprego nos Correios, na mesma estação, a fazer a mesma coisa, em Lisboa...  

Decorrera apenas o tempo suficiente para tomarem consciência que podiam melhorar a sua condição social concorrendo ao Instituto de Crédito do Estado, onde tinham pela frente carreira bancária, específica mas bancária…Foram juntos, estiveram na mesma «tumba», «lamberam» os mesmos papéis, arquivaram-nos no mesmo sítio, saíram para almoçar e entreter o tempo sobrante, calcorreando a Rua Augusta, ora subindo para o Rossio, ora abeirando-se do Tejo…Eram gémeos na dedicação e gizaram a paixão de chegar longe na carreira. Aos colegas parecia que tinham combinado o dia de morrer e que comprariam o jazigo na aldeia em comum e sem determinação de parte ou direito e ali permaneceriam, em memória para os vindouros, como símbolo de união.

Tinham subido na carreira, ambos classificados «Muito Bom» no concurso a que se submeterem por acordo…Antero queria o que o Antonino queria, e o inverso era sempre verdadeiro. Faria alguma inveja tanta afinidade a quem os conhecia. Augurava-se que ambos seriam, um dia, nomeados administradores…Aliás era essa a sua meta desde que mereceram o reconhecimento público no primeiro concurso a que se submeteram e denunciavam-na através do afinco com que estudavam, extra horário de trabalho, os «dossiers do sector» como se fossem chamados a decidi-los no dia seguinte!   

Eram seis da manhã. O Outono já se instalara e o ar frio desaconselhava o Antero a ficar à espera do carro do Banco, pronto apenas paras as oito horas, hora marcada para a chegada do avião de Madrid. Tomou um táxi e sentou-se no banco traseiro.

– Bom dia! Leve-me à João XXI… – disse, com voz cansada, ao motorista, que, agarrado ao volante, pela voz reconheceu-o e enfiou, de imediato, ainda mais o boné e ajeitou a gola do casaco, sem responder…

Era o Antonino! Recordou-se, enquanto percorria, veloz, as ruas da cidade desertas, do dia em que divergiram pela primeira vez: Viera a revolução e o Antero decidira filiar-se e dar a cara, no auge do processo, pelo projecto de mudar as relação laborais, conferindo a direcção da Instituição aos trabalhadores, num assomo de militância ao serviço do povo, quando ele, Antonino, premonitório, após a eclosão dos movimentos antagónicos, onde se agruparam os amigos comuns, cada um segundo a sua opção ideológica, lhe havia dito que sonhara terem--se separado porque o seu destino era ser independente… O Antero, desde então, «deu-se à causa» e adaptou-se ao movimento da onda: ora lhe subia à crista, se havia agitação, ora flutuava, se os ventos amainavam… Diz-se que, por causa disso, ascendeu na carreira. Mas é seguramente inveja porque competência e vontade não lhe faltavam… O certo é que, nesses tempos, ao local de trabalho só comparecia em «actos de representação dos trabalhadores», sempre para declarar, ufano, os ganhos da luta contra o capital e as forças reaccionárias. Em boa verdade, nessa época, motivava-o muito mais o propósito de concluir o concurso que deixara no segundo ano para ir à tropa com o Antonino...  

Parou o carro, lentamente, e deixou o Antero à vista do porteiro que, com vénia, lhe facultou a entrada, mantendo a luz frouxa do hall quando os demais trabalhadores ainda estavam a caminho, apinhados nos transportes públicos ou prisioneiros no IC 19 ou na A2… Mas antes, no momento da devolução do troco, o Antonino afastou o casaco, levantou o chapéu, e olhou, infeliz, o Antero, que o reconheceu.

Agora era tarde. O Antonino persistira, durante quase três décadas, arredio à filiação… Tivera na mão a inscrição que o amigo lhe assinara em branco. Há dez anos que aquele passageiro era administrador, primeiro delegado, não executivo, em empresas satélites, e presentemente administrador da confiança do presidente do Banco, que fora, também, militante daquelas causas… Vociferou, de modo quase audível, enquanto cerrava os dentes de raiva. Afinal, o «irmão gémeo» saíra-lhe teimoso… Bem podia ter feito o mesmo percurso e ser administrador como ele, cumprindo-se o desígnio que os unira. Agora, coitado, fazia de motorista de táxi para completar a pensão de aposentação irrisória, que os cinco anos entretanto decorridos degradara…

Aquele encontro inesperado abalara-o. Não deixou de pensar no Antonino enquanto alinhava os tópicos da exposição que faria nessa manhã quando o conselho de administração se reunisse. Queria impressionar os seus pares, argumentando que era o tempo de aquisições e fusões no mercado ibérico… Não logrou, porém, a melhor concentração, encerrado no seu gabinete de trabalho.

-Infeliz! – desabafou a dado momento, ainda impressionado com o encontro fortuito da madrugada. E, no íntimo, pensou que bem podia o Antonino ter ascendido ao seu lado e estar agora no apogeu do percurso…

- Motorista de táxi!... – exclamou em surdina.

Vieram-lhe à mente as dificuldades por que passava o Antonino… afinal, aposentara-se quando os dois filhos estavam a concluir a Faculdade e não fizera bem as contas pois, doutro modo, teria sobrestado o momento da aposentação, em que começou a perder rendimento… Misturando números e sopesando argumentos sobre aquisições e fusões sobreveio-lhe à mente, quando a situação do amigo se relevou de novo naquele emaranhado complexo de raciocínios, uma proposta que tinha deixado em «banho-maria» e que lhe fora apresentada pelos representantes dos trabalhadores, que mantinha em grande conta e estima, e releu-a…

Antes de concluir os tópicos da exposição que estava a preparar, despachou sobre tal proposta: «Estude-se, quantificando os custos financeiros duma actualização extraordinária das pensões, sugerindo-se ainda a fórmula de actualização anual que impeça a sua degradação tendo por parâmetro o aumento médio dos salários dos trabalhadores activos».

Era o mínimo que podia fazer para preservar a memória do percurso que fizeram juntos…

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