terça-feira, 26 de maio de 2020

Recortes de vida 12...

Não me referi, ainda, à importância que o comboio tem nas minhas memórias de criança! Não sei ao certo, mas, como antes admiti, penso que a mãezinha me levava para casa da avó Conceição, antes de eu ir para a escola, aos 7 anos. É de lá que me vem grande parte das imagens do comboio que ainda perduram. A avó Conceição – disso lembro-me bem! – contava as horas pela passagem dos comboios. Ela sabia se eram quatro da tarde, por exemplo, porque a essa hora passava o comboio rápido que ia para Braga e não parava na Estação de Rio Tinto, ali mesmo ao lado do Seguro. Sabia que eram oito da manhã porque vinha o comboio de Ermesinde, com o pessoal que ia pegar ao trabalho, no Porto, às 9 da manhã… Tantas vezes a ouvi dizer que acordou às três da manhã com o comboio de mercadorias que ia para norte… A avó Conceição não tinha relógio! Eu suponho, mas não tenho a certeza, que, naquela casa, começaram a orientar-se pelo relógio do tio Benjamim. Sim, porque eu lembro-me bem do casamento da Tia Mariana, a nossa tia mais nova, com o Tio Benjamim: fizerem um quarto na cozinha, como relembrei atrás, para eles dormirem e isso é um marco importante na minha memória. 
Para mim, sempre que estava por ali, no Verão ou no Inverno, de dia ou de noite, divertia-me imenso a atirar pedras aos comboios de mercadorias. Se era Verão e os vagões levavam sacos de cimento, atirava pedras aos sacos; se eram vagões de transporte de combustíveis, ácidos, tudo o que fosse líquido ou gasoso, atirava pedras pelo prazer de ouvir o tum, tum das pedras a bater nesses invólucros metálicos… Ah! Em miúdo fazia muitas avarias... Afinal, como é que se passava o tempo? A atirar pedras aos comboios, aos gatos, aos pássaros, aos outros catraios, uns aos outros, aos vidros das janelas, às árvores de frutas, aos ninhos nas árvores ou beirais… Lembro-me duma vez a Tia Mariana vir atrás de mim, pela rua do Seguro, para me bater porque eu tinha atirado pedras ao filho dela, o meu homónimo José Manuel, mais miúdo que eu, e ele foi-se queixar à mãe. A tia Mariana, que era minha amiga, nesse dia ficou zangada. Tenho a impressão que deixou de gostar de mim por ter feito mal ao filho dela… Só que, nesse tempo, a miudagem entretinha-se assim e o mais crescidos , se pudessem, submetiam os mais pequenos, batendo-lhes… Muito corri eu naquela quelha do Seguro atrás dos gatos, com pedras na mão! Não sei se ainda tens presente a traça arquitectónica da casa da avó Conceição e a sua localização, à esquerda, no sentido de quem olha para Baguim do Monto ou Serra de Valongo. Depois da casa dela só havia as casas da Serralheira, que faziam um ângulo recto e tinham frente para a linha do comboio. Virando essa esquina havia um muro sobranceiro à linha e era daí que mandava as pedras aos comboios e aos…gatos! Por vezes perseguia-os pelo quintal dela (da Serralheira) que fica paralelo à linha e fazia ligação ao quintal, por sinal enorme, da tia da nossa mãe, que morava lá mesmo no fim da quelha do Seguro… 
Mas o que gostava mesmo era ouvir o som da máquina a vapor no arranque… Quando a composição passava no Seguro, ainda a máquina vinha no seu máximo esforço para adquirir velocidade. Então, a nuvem de fumo subia até ao local alto onde estava, escurecendo tudo à frente dos olhos. Às vezes tinha que cobrir a boca e o nariz com a mão para não intoxicar com o fumo! E depois contava as carruagens, uma a uma… Foi nas carruagens do comboio que vi primeiro as grandes marcas de automóveis, transportados a céu descoberto, em vagões adaptados; foi também nessas carruagens que vi, depois de 1961, grandes grupos de jovens soldados que viajavam com destino a Lisboa, para embarcarem para o Ultramar… Se calhar foi nessa altura que comecei a idealizar esses destinos, que a propaganda oficial dizia serem também Portugal.
A minha primeira ideia de economia apreendi-a com os comboios: devia haver fábricas daquelas máquinas todas que os comboios transportavam em Portugal e no estrangeiro. Pelo menos os carros e as grandes máquinas agrícolas vinham do estrangeiro pois eu sabia disso através das colecções de cromos de automóveis. Se os carros não eram franceses, eram alemães, ingleses ou mesmo americanos. As mercadorias circulavam e isso era sinal de que havia quem as produzisse e quem as consumisse. E lá estava este infante sempre à espera do próximo comboio, sabendo, quase de certeza, se era de mercadorias, se transportava cimento, ferro, automóveis, cereais, carvão…, para lhe atirar pedras e ou contar as carruagens; saber se era rápido, sem paragem na Estação, se ia para Campanhã, se para São Bento, trajecto norte-sul, se ia para Ermesinde, Marco de Canaveses, Braga, Monção, se fazia o trajecto sul-norte. 
Mas aos comboios da minha infância ainda estão relacionadas memórias de tragédias. Pouco mais adiante, para Sul – para Norte também – havia uma passagem de nível com guarda, numa linha recta que ia até à estação de Contumil. Está na memória de todas as crianças desse tempo! Atravessámos essa passagem de nível tantas vezes! Como o comboio levava grande velocidade nessa zona, havia mulheres e homens que se atiravam para debaixo da composição… Aquilo era morte imediata. E enquanto não chegava a Guarda Republicana, lá iam os miúdos ver os destroços… Ainda me lembro de ver partes de mulher espalhadas pelas encostas. A minha curiosidade era grande em saber quem eram, porque fizeram aquilo… Em regras eram mulheres das redondezas e, mesmo sem saberem de quem se tratava, logo os curiosos que apareciam vaticinavam que aquilo foi acto tresloucado devido a traição, dívidas ou maus tratos… Nunca era bom para mim o sono da noite desse dia: via o comboio preto, qual animal monstruoso, a gritar de modo estridente para que não lhe barrassem o caminho… Depois via-o a levar à frente dele quem desafiava a sua potentíssima força destruidora. Talvez por isso, ainda hoje, não passo uma passagem de nível, de carro ou a pé, sem verificar, prévia a cuidadosamente, se vem dalguns dos lados um desses monstros assassinos, agora vestidos doutras cores, mas anunciando, tanto quanto os antigos,luto cerrado para quem cá fica depois da morte de quem não tomou cautelas... 
Não sei se ainda vamos ter tempo para ver comboios de alta velocidade a circular na linha férrea que passa em Rio Tinto… Não veremos, certamente, miúdos a atirar pedras ou a contar as carruagens! Hoje anda tudo muito rápido que nem sequer dá tempo para esses infantis momentos de contar de um a dez, ou mais, o número de carruagens ou distinguir a natureza da carga, saber a sua proveniência e destino...

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