segunda-feira, 25 de maio de 2020

Recortes de vida 11...

As minhas recordações mais antigas da infância não incluem, com nitidez, vivências na casa onde nasci, onde nascemos os três, afinal, incluindo o nosso irmão mais novo - a casa no Seguro, no interior daquela Quinta sobranceira à estrada de paralelepípedos de que, vindo da Estação, em sentido descendente, passa sob a linha do comboio e faz a ligação a Campainha, a Baguim do Monte, à Lourinha, sei lá, aquelas redondezas todas a que se acede passando para o lado direito da linha férrea no sentido descendente – Rio Tinto/Contumil. Da casa em si, lembro-me. Devo ter entrado na Quinta várias vezes, quando andava por ali nas brincadeiras ou subia a escada que, da referida estrada, dava acesso ao Seguro. Sei que ficava mesmo lá no fundo da dita Quinta, em frente do portão de entrada, que se localizava mesmo ao cimo da dita escada de pedra.
Do Seguro lembro-me mais da casa da nossa avó Conceição. As ruas eram de terra e, no inverno, as águas vinham lá do Alto de Medancelhe e cavavam profundas valetas, tornando-as quase intransitáveis. Aliás, os carros nessas ruas do Seguro eram raros e no tempo de chuva praticamente não acediam por causa das péssimas condições e da inclinação delas, especialmente o troço que dava para a única saída dos veículos, incluindo as carroças puxadas com junta de bois ou cavalos. As famílias dos nossos pais eram mesmo muito diferentes, inclusive na sua condição social.
A nossa avó Conceição era iletrada, mulher viúva, que trabalhava muito. Em qualquer altura do ano, lá ia ela, com as roupas das freguesas do Porto à cabeça, para o rio de Campainha, onde as lavava, punha a corar e secava. Gostava muito daqueles dias de Verão em que a acompanhava ao rio e ficava por ali horas a brincar. Ela tinha uma pedra na margem esquerda do rio e um caixote, em madeira, onde se ajoelhava. Molhava a roupa, e, sendo branca, ensaboava-a com sabão azul ou «macaco» e estendia-a sobre a erva verde da margem do rio (quando a roupa era muita ou muitas as lavadeiras, entendi-a até sobre os silvados circundantes, com cuidado, para não se rasgarem… lembro-me desse trabalho cuidadoso de retirar lençóis, já secos, de cima dos silvados, que ficavam, muitas vezes, presos aos espinhos e não se podiam rasgar...) para ficar ao sol a «corar»; depois de seca, recolhia-a e voltava a passar por água. O efeito do sabão e da permanência ao sol era visível depois de lavada de novo – as peças brancas ficavam mais brancas e as nódoas, quando era o caso, desapareciam. No Inverno, a tarefa era muito mais exigente, fisicamente, porque, à falta de sol, era preciso carregar a roupa lavada ainda molhada, em alguidares, à cabeça, e estendê-la dentro de casa para secar antes do dia da entrega, no Porto, às freguesas.
Essa imagem da nossa avó, com uma trouxa à cabeça de roupa suja, quando vinha do Porto, quando ia para o Porto de roupa lavada e a cheirar a rio e sabão, não existe mais. As lavadeiras como ela era desapareceram há muito tempo. Desapareceram, penso eu, porque surgiram as máquinas de lavar, porque as mulheres jovens passaram a procurar emprego na fábricas e os rios foram ficando cada vez mais poluídos. Salvo erro, era à segunda-feira que a nossa avó tomava, manhã cedo, o comboio para o Porto, carregada com a trouxa de roupa lavada e regressava já ao fim da tarde com a que recebera das freguesas das limpezas de domingo. Trabalho muito penoso o da nossa avó Conceição, mas era o seu ganha pão. Nos últimos anos de vida, ela já não tinha saúde para esse trabalho e nem sei como sobrevivia. Talvez com o salário do tio Benjamim, que casou com a tia Mariana, a irmã mais nova da mãezinha. 
Da casa da avó tenho recordações muito nítidas. Deve ter sido por ficar à guarda dela e da tia Mariana, antes de ir para a escola, e durante o tempo que os nossos pais passavam fora de casa, a trabalhar. A entrada dava para duas amplas divisões, as únicas da casa: passando a porta de madeira, entrava-se na sala, onde estavam as camas de dormir, sob um telhado de estrutura de madeira, com telhas portuguesas, antigas, à vista, e sobre um soalho, também em madeira muito gasta, onde o caminhar calçado ressoava por toda a divisão. Parece que estou a ver neste preciso momento a avó deitada na cama de ferro, ao fundo da sala, à esquerda; quem entrava, à direita da porta, ficava a cozinha, uma divisão com o chão em terra batida, alisada com pó de carvão. De facto, o chão era muito escuro, da cor do carvão, como o eram as telhas e as paredes, mas estas por efeito do fumo. Havia, do lado direito de quem entra, uma mesa enorme de madeira onde estavam parte dos instrumentos de cozinha e onde também se tomavam as refeições; mais adiante, e junto à porta, que dava saída para o quintal, nas traseiras, existia um lavatório e uma grande vasilha em barro, onde se curtiam as azeitonas colhidas nas oliveiras do quintal. Essa cozinha foi mais tarde dividida, quando a tia Mariana casou, para construir um quarto de dormir, que passou a ser do casal. Até aí, havia outra cama na sala, onde a tia dormia. 
Muito carvão apanhei eu para aquele fogão, feito em pedra, que se acendia pela manhã e só esmorecia depois da janta! Aquelas pedras de carvão, usadas nas caldeiras das máquinas a vapor da CP, eram extraordinárias: feitas de pó de carvão, ficavam em forma oval e depois de estarem incandescente faziam um calor extraordinário, que era duradouro, ao contrário do carvão de madeira ou das brasas de madeira. Apanhavam-se percorrendo a linha do comboio. Os fogueiros das locomotivas deixavam-nas cair da pá no momento em que alimentavam o forno com a composição em movimento. Apesar do fogo ser bom, lembro-me que a panela de água com feijão a cozer ficava ali ao lume horas e horas… depois era o tempo de cozer as couves da horta…
Desde pela manhã, depois do café, naquela divisão havia sempre um saboroso cheiro a comida, comida de pobre, é certo, mas comida que nos saciava. A sopa da avó «caturra» era deliciosa, sempre feita à base de feijão e do que se colhia no quintal, que era espaçoso e onde se plantavam, pelo menos, muitas hortaliças. A água era tirada a braço, no poço, cuja fundura era enorme e no qual, no Verão, só se via a água lá mesmo no fundo. Depois das brincadeiras, subia pela escadaria que dava acesso ao quintal, nas traseiras da casa, para matar a sede com a água do poço… penoso era, com sede, esperar aquele tempo todo enquanto se atira o balde (para baixo deixava-se o sarilho rolar, solto, até o balde bater na água) e se recolhe, tão cheio quanto a força de braços permitia, lentamente, dirigindo a corda para que, com os balanços, o balde não batesse nas paredes empedradas do poço…e entornasse a água. Ah! Era melhor aquela água fresca para saciar a sede da criança cansada de tanto correr do que os gelados que agora estão à disposição de todas as crianças… 
Outros tempo os da avó Conceição e os meus, vividos, na infância, naquele lugar sossegado do Seguro, aonde voltarei para lembrar as diabruras que por ali se faziam…

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