terça-feira, 2 de abril de 2024

Viver tem destas coisas...


Passava pouco do meio dia quando o telefone fixo tocou. Estive para não atender. A essa hora, em geral, estou sempre atido a alguma tarefa doméstica relacionada com a melhor refeição do dia, o almoço. No ecrã do aparelho, vi a terminação do número donde ligavam e relacionei-a com o número do meu amigo Elias Bogalho. Em regra, bastam-me os três algarismos finais para saber quem me quer falar. Às vezes, equivoco-me e lá apanho com a simpatia dos vendedores de qualquer coisa: electricidade, painéis solares, serviços de comunicação, jornais online... Mas era ele, confirmei-o logo que levantei auscultador e ouvi:
- Levas tempo a atender!
O Elias foi sempre assim: directo, com sentido de urgência. O que pode dizer em poucas palavras, di-lo e tudo que lhe importa não procrastina.
-Então, sempre a mesma pressa... - disse eu, sem reflectir.
-Não é pressa nenhuma, é só para te dizer que não tive resposta à carta que te mandei ontem...
Lá o despachei, dizendo que devia estar na caixa do correio, o que só confirmaria depois de ter almoçado...
- Diz-me o que te parece sobre o tema... - concluiu, antes de desligar.
Ao meu amigo não escapam pormenores. Diria que parece andar sempre à procura deles. Bem, é cá para comigo que vou dizendo que as suas preocupações são pormenores. A ele não soa bem. Afinal, quebra a rotinas dos dias filosofando sobre o que ocorre à sua volta. E se valoriza o voo picado dum mosquito não se lhe diga que quanto mais picado o voo for mais incomodativa é a presença do bicho...
Bem, mas vamos ao que interessa...
Lida a carta, ao fim da tarde, respondi-lhe:
«Então espantas-te que o juiz tenha decido contra o trabalhador, mantendo o despedimento que impugnava? Se nas suas funções se incluía o dever de cobrar os bilhetes aos passageiros e emitir os respectivos recibos, não faturando em dois casos – ao que parece, pelo que escreveste, «nem meteu o dinheiro ao bolso»... - violou gravemente os seus deveres funcionais. Nem o argumento de que o trabalhador motorista (os motoristas conduzem, abrem e fecham portas, emitem e registam bilhetes...) apenas causou um dano simbólico à entidade empregadora te serve de crítica à sentença.»
O Elias usa os transportes públicos para tudo. O automóvel só sai da garagem se o tempo está chuvoso e a deslocação é inadiável. Também quando vai mais distante fazer as compras do mês e a mulher quer ver, demoradamente, as novidades nas montras do Centro Comercial. Os pormenores do quotidiano apanha-os, quase sempre, no autocarro, no metro, no comboio. Até quando vai sentado, e aproveita para adiantar uma leitura qualquer, presta atenção ao que ouve, às vezes sussurrado, quando não de modo bem audível, ao telefone ao seu lado...
Fora no jornal do dia anterior que lera a notícia dessa decisão judicial. Ele considerava que bastava que o motorista entregasse, em correcção, o valor desses dois bilhetes... Agora, despedido?! E se – isso ele não sabia – os passageiros apenas se tivessem esquecido do passe social e alegaram isso? E se – isso também não sabia – os passageiros fruíam do direito de viajar gratuitamente e não eram portadores do respectivo documento comprovativo? O Elias supunha na sua missiva muitas situações que já observara nas quais os motoristas condescendiam e não houvera fiscalização no percurso.
- Se tivesse havido, teriam sido despedidos?, perguntava como que admitindo que o melhor, nestas coisas, é ser rigoroso...
Mas sempre foi dizendo que, às vezes, não é fácil e contou:
- Não foi há muitos dias que fiquei (ficamos todos, que o autocarro estava quase lotado) longos minutos à espera que o motorista reiniciasse a marcha e estava apressado para chegar a tempo ao hospital para visitar um familiar internado. Entrara no autocarro uma jovem cujo bilhete «dava» zero viagens no controlador automático. O motorista reparou e aprontou-se para emitir o bilhete. A jovem trazia na mão o recibo do carregamento que fizera na estação ferroviária, onde saíra doutra viagem. Mas carregara viagens de comboio, não de autocarro... Já outros passageiros queriam, para irem depressa às suas vidas, pagar o bilhete da jovem, que continuava a dizer que tinha bilhetes, acabados de adquirir, comprovadamente...
O motorista resolveu o impasse, deixando-a viajar... sem pagar!
O Elias idealizou o que aconteceria ao motorista se, naquela viagem, tivessem entrado os fiscais...
Não pude deixar de compreendê-lo e lá lhe fui dizendo que «viver tem destas coisas»...

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