domingo, 23 de agosto de 2009

Parabéns, ARM!

NOTA: Alfredo Rosendo Machado faz hoje 95 anos. Não encontrei outra maneira de o homenagear: ficam aqui disponíveis as palavras que proferi na apresentação do seu penúltimo livro, cuja Nota Editorial tive a honra de escrever.

DAR A VIDA COM PROPÓSITO
(Tópicos para usar na apresentação do livro «Dar a vida com propósito, de Alfredo Rosendo Machado, no auditório da Aliança Evangélica Portuguesa, editado por Letras d’Ouro»)
Conhecemos o irmão Alfredo – tratar o autor da obra que hoje aqui apresentamos por irmão é propositado pois entendemos que, para além das simbologias que se geram nas convivências de familiaridade eclesial, esse tratamento representa a convicção de que os títulos funcionais não suplantam em importância o que é distintivo nesta fraternidade por opção; poderíamos, ajustada e respeitosamente, tratá-lo por pastor, mestre, professor, escritor, até por bispo, com reconhecimento eclesial, mas preferimos manter a proximidade fraterna, mesmo num contexto público, onde o que está em causa, em primeiro lugar é a obra, não o obreiro... – como dizia, conhecemos pessoalmente o ir. Alfredo em circunstâncias muito particulares, das quais, seguramente, nos recordamos mais que a ele, tantas terão sido as ocasiões em que serviu outros quanto nos serviu a nós.

Estávamos nos já longínquos primeiros dias do mês de Dezembro de 1965, quando, depois de viajarmos a noite inteira, de Campanhã a Santa Apolónia, portadores de recomendação firmada por João Sequeira Hipólito, pastor da Assembleia de Deus do Porto, nos apresentámos em Neves Ferreira, pela noite já cerrada de Inverno, mas antes ainda da hora do Culto desse dia. Tínhamos andado por Lisboa como alfacinhas no Porto – às apalpadelas. Seguimos a ordem de quem nos recomendara: «Ide ter com o Ir. Alfredo Machado». Foi ele quem nos proporcionou mesa, com a ajuda prestimosa da irmã diaconisa que residia em Neves Ferreira, cujo nome agora não nos ocorre, nos deu dormida na sua própria casa, onde couberam mais três, pois o «nós» que temos utilizado não é majestático – são dois rapazes, de 11 e 15 anos, e uma menina de 18 anos, que iam a caminho do «sonho africano». O ir. Alfredo foi o nosso anjo e ainda nos levou ao Cais da Rocha de Conde de Óbidos para o embarque, se a memória nos não atraiçoa...

Na minha memória, cerca de 43 anos depois, permanece quase incólume o registo dessa hospitalidade e carinho, qualidade tão estruturantes, se nos permitem o termo, na nossa formação cristã. O pastor da grande Igreja de Lisboa, de que ouvia falar lá nas fraldas do Porto onde nasci para a fé, aos 12 anos, deixou os seus afazeres, todos importantes certamente, para cuidar pessoalmente destes três desconhecidos, de quem, provavelmente, nunca mais voltaria a ouvir falar... Recordo-me de si, ir. Alfredo, desde essa ocasião; estou-lhe agradecido e não podia deixar de dar este testemunho aqui, pedindo penhoradamente perdão a quem me escuta por este descarado oportunismo (podia tê-lo dado noutra ocasião). E peço-o – o perdão, claro – mais uma vez para dizer que voltei a encontrar o ir. Alfredo um ano depois, contra todas as expectativas. Era ele professor do Instituto Bíblico, que ia no seu segundo ano, e eu seu aluno... Lembro-me bem, ainda imberbe, quase analfabeto das coisas da Bíblia, como me entusiasmava com as suas explicações sobre a epístola de Paulo aos Gálatas (estudo que depois veio a público sob o título Magna Carta da Liberdade Cristã) e como o professor irmão Alfredo enfatizava o ensino de Paulo! Lembro-me ainda do pregador desse tempo que, ao Domingo à noite, arrebatava plateias que vinham aceitar Jesus e o doutrinador que a todos empolgava para servir o Mestre! Foi assim durante todo o primeiro semestre de 1967. Lembro-me ainda do bálsamo que nos levou a Luanda, do empenhamento em conseguir que um pastor se interessasse por nós ali, no tempo da Igreja de Jesus, trabalho meritório de Beatriz e Ricardo da Ribeira... Lembro-me que a sua acção foi um contributo decisivo para que a Igreja ali, a partir de 1969, se projectasse num crescimento nunca visto...

Só há cerca de seis anos nos aproximamos para celebrar o segundo Curso Bíblico do Instituto da Almirante Reis, em 1967. Fizemos entretanto cinco encontros e o ir. Alfredo foi sempre nosso convidado, como único professor sobrevivo, com o qual nos dá gozo partilhar as nossas existências.

É aqui que encaixa a génese do percurso que nos trouxe até esta casa de todos os Evangélicos, a Aliança Evangélica Portuguesa, com a colaboração do ir. Samuel Pinheiro e deferência da Direcção, a quem agradecemos.

Um dos pontos da «Ordem de Trabalhos» permanente desses nossos encontros é falar do passado, do percurso de cada um. O ir. Alfredo tem participado sempre com grande entusiasmo, falando do seu ministério, do que Deus fez por seu intermédio e, em especial, da convicção que desde sempre alimenta de que verá Jesus nas nuvens, proximamente... Não fosse ele o autor da obra «Vem o fim, o fim vem!», que tanto e tão bem enfatiza essa «bendita esperança» dos fiéis... (Edição Pró-Luz, 1976). Quão precioso tem sido esse tempo de convívio fraterno, ir. Alfredo!
Falámos durante esses períodos de convívio dos trabalhos que já saíram da sua laboriosa pena e, em particular, dos que ainda não foram publicados. Começámos a falar de livros, da possibilidade de os publicar, pois tínhamo-nos aventurado na escrita editando a nossa primeira obra... Falámos então da hipótese dele escrever as suas memórias, aproveitando o ensejo de ser esse o tema principal dos nossos encontros. Disse-nos que estavam escritas e assegurada a sua edição. Não insistimos. Ficámos contentes e ansiosos por lhe passar a vista em cima... Ainda acalentamos o desejo de as ver publicadas e apresentadas num grande evento, tão fraterno como este e onde estejam todos os seus amigos e irmãos em Cristo que gerou durante gerações. Uma grande manifestação de reconhecimento, transversal à comunidade pentecostal e não só, pelo homem e pela obra, que fica bem e, ao contrário do que pensarão alguns, trará glória para o Senhor que sempre serviu e quer continuar a servir... Será, ir. Alfredo, uma maneira de bonita de lhe «Dar flores enquanto vive» – e peço de empréstimo esta frase muito celebrizada ao querido irmão e amigo António Costa Barata.

Neste contexto, e já que não podíamos deitar os olhos às memórias, o ir. Alfredo apresentou-nos vários projectos editoriais, um dos quais está materializado na obra que está nas vossas mãos.
Quando lemos o manuscrito, tenuamente identificámos as histórias de vida que nele são contadas. Achámos que o ir. Alfredo tinha um propósito, com o qual se identificava e que, consciente ou inconscientemente, protagonizava. O registo do trabalho era diferente do que já tínhamos lido dele e que João Tomás Parreira anotara quando ainda eram conhecidos apenas quatro ou cinco títulos da obra publicada: «Os livros de ARM revelam um estilo pessoal que se pode denominar, de maneira mais própria, panorâmico e eclesial. Eclesial por que os fez impregnar de um sentido pastoral, não lhes deu o tom de obra de divulgação para agirem fora da Igreja. Panorâmico porquanto abrange alguns temas importantes, tomando posição sobre eles, mas mantendo sempre o mesmo compromisso com a análise e a mesma linguagem de aconselhamento» (cf. NA nº 426, 1978, pág. 10).

Em «Dar a vida com propósito», e respigamos o que escrevemos na Nota Editorial que abre a obra, o objectivo de ARM não é tanto abordar ou aprofundar este ou aquele tema mais dúbio, obscuro ou discutível no âmbito da doutrina e teologia cristãs, mas algo de crucial importância, que às vezes é obnubilado, e que os leitores descobrirão facilmente no decorrer da leitura, que é fácil, emocionante e atractiva, cuja matriz se destaca em cada uma daquelas histórias: a substituição vicária de Cristo, a revelação do incomensurável amor de Deus aos simples de coração e a coragem de confessar o nome do Senhor, entregando a própria vida.

Não são, hodiernamente, muito comuns os exemplos de amor maior, ou seja, o de dar alguém a sua vida pelos amigos, de amizade sem limites de dar a vida pelo outro (não falamos dos que a dão por causas egoístas, quer sejam pessoais, quer sejam de pretenso interesse colectivo…). Como não é valorizado o papel dos simples na redescoberta da essência do amor de Deus, que apela a uma atitude de despojamento dos bens finitos e à valorização dos bens que têm eficácia eterna. A própria vontade e disponibilidade de servir a Causa do Mestre, quando tal acontece na antecâmara do martírio e inspira o refinamento da confiança no devir eterno, não são manifestas.

Isso acontece assim nesta Urbe globalizada porque se veiculam estereótipos de vida feliz, alcançável sob pressupostos reivindicativos de abundância de bens materiais e de bem-estar social, sempre na raia do hedonismo mais radical, ficando para as «coisas do espírito» a distribuição das sobras, também elas inúteis por obsoletas. À semelhança do hardware e do software que envelhecem no próprio dia em que vêem a luz do mundo, ou da ribalta tecnológica, se quisermos, o que é destinado ao convívio interactivo com os outros é de somenos importância porquanto «atrapalha» a descoberta e uso dos bens que embelezam a pele e massajam o ego!...
Assim, em boa hora o Ir. ARM trouxe do «pó dos anos» três histórias de vida, todas duma grande densidade humana e espiritual, capazes de remoçar as almas ainda sensíveis e não totalmente resignadas às exigências dum quotidiano de rotinas que, antes de tudo, visam a satisfação dos interesses imediatos e superficiais.

Está perdida no mundo a esperança de encontrar quem enfrente com o outro as fatalidades da vida para lhe mudar a condição. Soa, por isso, quase como mero aforismo a ideia de que um amigo pode dar a vida pelo outro… até porque os próprios cristãos se secularizaram ao ponto dos rituais do culto servirem exclusivamente como meio de auto satisfação e apaziguamento dos malefícios da inércia e anemia espiritual…

Não nos parece, assim, por acaso que o autor traga à reflexão dos leitores o pressuposto convivencial sempre presente na reunião dos santos – «em memória de mim». Ele sabe que comemos e bebemos para perpetuarmos os rituais do nosso bem-estar…. Não para recordar o acto de substituição, que na primeira história está exemplificado, nem a promessa do regresso do Senhor… Afinal, «todos buscam o que é seu».

Como também não é por acaso a honra que dá a Paulo, que lhe «escreve» o prefácio! Ah! Como andamos descuidados e temerosos… receamos tudo o que nos possa acontecer! Mas não é esse o desígnio de Deus, que garante a vitória dos salvos, sejam quais forem as circunstâncias, ainda que estas impliquem perseguição, genocídio, martírio… o que for que o inimigo aflija os filhos de Deus.

Do que conhecemos do autor – por contacto pessoal, por leitura dos seus escritos, por tudo o que ouvimos a seu respeito – «Dar a vida com propósito» quase que assume laivos autobiográficos. Aliás, o tema foi abordado no Prólogo da sua obra «A Magna Carta da Liberdade Cristã», (Edições NA da CAPU, sem data) como testemunho de vida, ai plasmando o sentido da vida cristã qual é a defesa da «fé que uma vez foi entregue as santos, e pela qual ainda hoje devemos estar prontos a combater e a dar, se preciso, a nossa vida».

Pelas razões supra aduzidas e que melhor resultarão da leitura da obra, parece-nos feliz o título. Em cada uma das histórias encontramos exemplos que consubstanciam essa ideia. O de Cristo é o que mais conta, como exemplo único de entrega.

«Dar a vida com propósito» não quer cavalgar os lombos doutras obras de sucesso mundial, especialmente aquelas que os leitores imediatamente associam à palavra «propósito», ínsita no respectivo título. Não. Este título exalta o acto de DAR como manifestação de amor. E se o que temos para DAR é a própria vida nada mais nos pode ser pedido... No fundo, bem no fundo, está escondida nesse título a exortação mais premente nos tempos que correm: entregar o Evangelho de forma prática e eficaz.

Queixamo-nos que não temos tempo para Evangelizar... A Bíblia está disponível no PC de todos os amigos que queremos evangelizar, e já recomendamos que a lessem... Mas no coração de muitos mora o peso de não corresponderem ao apelo do profeta que os incentiva a avisar o «homem mau»: «Se avisares esse homem mau e ele não deixar o seu caminho, esse tal morrerá, porque é pecador, mas a tua vida será poupada» (Ez. 3:19).
O Ir. Alfredo, com esta obra singela, proporciona um instrumento poderoso, um salva-vidas «à maneira», que todos podem utilizar, lendo e oferecendo.

Por mim, vou continuar a ler e apoiar os autores portugueses, que escolho pela qualidade, não por via de qualquer preconceito xenófobo, que abomino, e começar a elaborar o rol dos que quero avisar, para poupar a minha vida, oferecendo-lhes «Dar a vida com propósito»!
Não queremos, porém, esconder que se vislumbram acrescidas e cada vez maiores dificuldades para levar as letras lusas evangélicas até novos leitores. Vamos, no entanto, manter e se possível dar novo ânimo ao nosso projecto de editar autores portugueses, sem prejuízo do critério de qualidade que nos impusemos. É a nossa resposta a essas preocupações, que já são crónicas, e que, de quando em vez, se tornam evidentes através da palavra e acção dos que melhor conhecem a enfermidade do nosso panorama editorial. Em 1991, um conhecido autor no meio evangélico, com mais de três dezenas de livros publicados, alguns dos quais editados além fronteiras, em entrevista à revista Novas de Alegria (NA nº 587, Dez.º 1991) colocava o problema desta maneira: «Há entre nós um conceito errado de que só os estrangeiros são bons, exceptuando algum português que os estrangeiros recomendam. Por isso, investe-se pouco em autores portugueses, preferindo-se a importação. Infelizmente, alguns desses livros importados contêm princípios contrários à doutrina evangélica. Os grupos heréticos vanguardistas compram-nos em grandes quantidades».

Esta análise, ainda hoje, faz algum sentido.
Finalmente, que já nos alongámos e não queremos perder a vossa benevolência, hoje cumprimos uma promessa que fizemos a nós mesmos quando ouvimos o ir. Alfredo dizer, publicamente, numa iniciativa de lançamento dum livro para o qual foi convidado especialmente e que os editores apoiavam, mais ou menos nestes termos: «Já escrevi e publiquei muitos livros mas não tive uma oportunidade destas». Não será como aquela, ir. Alfredo, não será o mesmo auditório, não terá a mesma «pompa e circunstância», nem sequer está reservado para os seus convidados o «beberete» da praxe, mas tem-nos aqui, nesta festa de amigos, agradecidos pela sua determinação e para lhe dizer: «Não Desistas!» (O ir. Alfredo e eu sabemos bem o que significa este apelo! «Não Desistas» pode ser, se ele quiser e o Senhor nos ajudar, o título à volta do qual nos reuniremos de novo, num tempo próximo).

Vamos juntos «Dar a vida com propósito» e contamos consigo para outras jornadas de trabalho.
Lisboa, 29 de Março de 2008, Auditório da Aliança Evangélica Portuguesa
José Manuel Martins

Sem comentários:

Enviar um comentário