sábado, 2 de maio de 2009

A memória da juventude...

Há um fosso enorme, intransponível, que só a imaginação pode vencer, entre o que somos hoje e o que projectámos ser quando começámos a sonhar. É sabido. Todos aceitarão essa verdade olhando para o percurso próprio. Apesar disso (do fosso intransponível) queremos voltar ao passado e, arrogantemente, fazer um percurso diferente ou, pelo menos, teorizá-lo em função deste «se», daquele «mas», daqueloutro «talvez». Pode ser um exercício um exercício saudável para a mente, pode ser até um modo de construir futuros diferentes nem que seja para dizer ao neto: »Se tivesse casado com a Miquelina (ou com o Miquelino), já não tinhas avó (avô) porque ela (ele) já morreu!». Mas não é seguramente caminho seguro para caminhar porque o futuro não se faz do que não foi objectivamente vivido. O poder do que sonhámos, mas não aconteceu, não se projecta no futuro, não se transforma em pólen doutros sonhos, não gera novas realidades; ao contrário, pode tornar-se doentio por impedir o surgimento do poder efectivo do que ainda somos capazes de sonhar... Por isso, voltar atrás para revisitar o passado, ainda que seja para emocionalmente «repetir» o que aconteceu, deve ser um simples exercício de memória para saber quem somos, donde viemos, não para saber quem seríamos, donde teríamos vindo «se», «se»....

Revisitar o passado das emoções juvenis, sentimentais, apaixonadas, febris... pode fazer esquecer momentaneamente as cãs, as rugas, as maleitas, as agruras, a perda da auto-estima, a decadência, o estreitamento de horizontes, o fim próximo... Acaba por se transformar, esse exercício de regresso, num elixir significante, num andarilho que permite, às vezes um clic de despertamento para o que ainda é possível concretizar.

Revisitá-lo tendo na mente um pessoa concreta, as suas características físicas, o seu sorriso, os seus olhos (o brilho deles...) a maciez da pele, as pintas amarelas na testa, o ruivo dos cabelos, o timbre de voz, os gestos repetidos, o gingar das ancas, o leveza do assentar dos pés... revisitá-lo pensando no canto do melro, no chilreio dos pássaros no jardim, no corre-corre da água do riacho, na frescura da relva, no bate-bate do coração, no medo de ser visto, na correria para multiplicar os encontros num dia só, nas arranhões dos silvados, na resina na roupa, no cheiro a eucalipto, na terra cinzenta colada à sola dos sapatos, no pneu furado, na mota pela mão por ter acabado a mesada para gasolina...

Sim, revisitar o passado para trazer de lá força anímica, tónico de vida, vontade de renovar a esperança, recomenda-se! Vá lá, vamos ao passado, à procura dos «lençóis» onde sonhámos o futuro, do «leito» em que imaginámos o «amanhã», da «diva» do nosso devaneio, do «Homero» da odisseia que projectámos... do chão em que dobrámos os joelhos, do Deus a quem prometemos fidelidade, do bem que jurámos espalhar... está tudo lá, genuíno, sincero, como éramos e como queríamos que fosse o «castelo do nosso reino», a «rainha da nossa corte», o «rei do nosso coração»!

Pode suceder - o mais provável é que suceda! - que a fotografia, onde visionamos o ontem, não tenha correspondência com o que está à volta, hoje, e que nos alimenta os dias, inexoravelmente. Não importa, porque se recordar nos faz felizes podemos repetir o exercício, que a crise não afecta por ser livre, gratuito e sem limites. Só temos que acautelar que, encerrando o álbum, voltamos mesmo ao presente para não «andar na lua» ou «aluados»...

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