sábado, 30 de maio de 2020

Calma, não condene se tem dúvidas...

Justiça popular:
O Manel diz mata, a multidão aí vai de varapaus... Está morto o criminoso (como nos jornais, no dia seguinte à notícia, ou nas redes sociais, quando se corre a assinar petições para prender qualquer um...).
Justiça a sério, no local próprio:
Muitas cabeças, muitas sentenças, contra e a favor, depois o Tribunal decide.
(percurso penoso, demorado, mas o veredicto vem...)

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«Alega o recorrente que a matéria de facto foi mal apreciada, tendo o Tribunal a quo violado o princípio in dubio pro reo, sustentando que inexiste prova que sustente a condenação do arguido, já que a única prova existente é um vestígio lofoscópico num local que era normalmente frequentado pelo arguido.
E, para tanto, transcreve partes significativas das declarações prestadas pelo arguido e pelo ofendido, das quais resulta que o arguido era vizinho e cliente do ofendido, dono da mercearia assaltada.
Na sua resposta, pugnou o Ministério Público, junto da 1ª Instância, pela procedência do recurso, considerando ter sido efectivamente violado o princípio in dubio pro reo e incorrectamente apreciada a prova produzida.
Já neste Tribunal de Recurso, a Ex.ma PGA pugnou pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, considerando ter o Tribunal a quo valorado devidamente a prova produzida.»

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«Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido, considerando-se não provada a autoria dos factos em causa nos autos por parte do arguido e absolvendo-se, consequentemente, o mesmo arguido da prática do crime de furto qualificado que lhe estava imputado.»

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Os jornais «encerraram na prisão», por muitos anos, o gatuno logo que ouviram as testemunhas que ouviram dizer o que se passara, nas redes sociais continuam postadas dezenas e dezenas de condenações - cada uma testemunha que falou aos jornais, televisões e rádios, reafirmou a condenação sempre que alguém admitia que podia não ser bem assim...- de tal modo que o homem não entrava no bairro senão de cabeça baixa;  a polícia investigou, o laboratório examinou, o Ministério Público acusou, o juiz condenou, decretando a pena de prisão adequada, o Ministério Público que acusara disse que o juiz devia absolver o arguido, mais acima, na hierarquia, o Ministério Público disse que a condenação fora bem decidida; o arguido sempre a reclamar que não havia provas de que fora o autor do crime de furto qualificada à mercearia do seu bairro, inocente, portanto.

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Eis que, longe da multidão armada de varapaus, dos jornais que já condenavam outros inocentes, das redes sociais a preencher maus umas quantas petições, reclamando sempre, está claro, justiça, e diante de tantas «sentenças» quantas as cabeças pensantes que emitiram juízo sobre os factos, seguindo o ritual, os donos da última palavra proclamam: Inocente!

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No bairro disseram: - Está mal!
Nos jornais: - A polícia persegue, prende, o juiz não faz caso, liberta...
Nas redes sociais: - Que medo, um ladrão mais à solta...
O advogado: - Eu bem previ que não havia provas!
Os Magistrados do Ministério Público: - É a vida, tivesse a polícia investigado melhor...
O juiz que condenou e os que absolveram:  - A decisão que vale é a que já não pode ser mudada. 
O arguido: - Ainda bem que tive quem me defendesse, na base da dúvida...
OK. Até pode ter assaltado a mercearia, da qual era cliente habitual e conhecido do dono. Mas é melhor ter um culpado à solta do que um inocente na prisão! E na dúvida não se condena ninguém... Nos Tribunais, claro...


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