domingo, 21 de fevereiro de 2010

«Angolanidade»

Ontem andava por Sete Rios, apressado, pois chovia, o carro estava mal estacionado (em cima do passeio, pois claro, que há mais carros naquele sítio que espaço para pôr os pés...)... Trazia uma caixa com muitas relíquias do espólio dum defunto culto (ver o meu apontamento anterior) e procurava colocá-la rapidamente na mala do carro (a chuva caía e receava danificá-las pois a caixa era de cartão e já estava a ficar amolecida...) quando um homem jovem me abordou e pediu dez cêntimos!
-Homem, dez cêntimos para quê!? Não se compra nada com essa importância…
-Para comprar um pão… – disse-me, antes que desvalorizasse o pedido.
Ele era negro, não tinha ar de mendigo e parecia sincero.
Trinta anos. Um homem feito, de rosto largo e magro (diria que pelas feições tinha ascendência fora de Luanda, talvez em Malange…), nascera na Vila Alice, em Luanda, no ano de 1980, e estava em Portugal desde os dezasseis anos. Fugira à guerra, certamente.
O patrão não lhe pagara na sexta-feira, não lhe pagara no sábado e ele ainda não tomara o mata-bicho nessa manhã...
Chovia.
Disse-lhe que, quando tinha dezasseis anos, também eu andara pela Vila Alice... As memórias que me assaltaram naqueles segundos! A tristeza que me invadiu por ver ali um «patrício» a necessitar de dez cêntimos para «matabichar» comprar um simples pão...
Chovia bem e o homem ali, à espera que me decidisse.
Não havia por perto um sítio para nos sentarmos, recolhidos, e partilhar algo de comer...
Ofereci-lhe muito mais do que me pediu e desejei-lhe a melhor das sortes.
Chovia e os livros estavam a salvo... mas dentro de mim alojou-se uma tristeza rara... Um valoroso angolano, nascido na Vila Alice, na «minha» terra, sem pão para comer ao pequeno-almoço num dia frio e chuvoso nesta metrópole europeia...
Se pudesse voltar a trás, não o deixaria abalar, com o dinheiro no bolso – ia à procura dum sítio acolhedor e ficava ali a ouvir o homem, pedia-lhe que me contasse o que foi a vida dele até sair da Vila Alice, o que o fez, de facto, na flor da juventude, zarpar de Luanda... que me contasse para quando está previsto o seu regresso (não há tanta gente a regressar à sua terra?)... que me contasse o que ainda sonhava para o seu futuro...
A tristeza foi maior ainda porque perdi a oportunidade de sentir mais intensamente esta «angolanidade» que me assola, amiúde, e que, queira ou não, vai vivendo dentro de mim... mas também a oportunidade de saber as causas imediatas que justificavam que um patrão (aquele patrão) não pagasse a tempo e horas o salário devido e fizesse sofrer assim um homem (não é fácil pedir dez cêntimos a um desconhecido... será mais difícil até pedi-los a um conhecido...).

O meu desempenho não me satisfez, mas já não posso voltar atrás.

2 comentários:

  1. Acredito, que não voltará acontecer...
    Agora, acredito, que numa próxima cena, que se depare, irá ter "tempo", para trazer de volta algo positivo, que partilhará connosco e que o fará sorrir, de que valeu a pena, os momentos que dispôs para dar e receber!!!
    Um abraço amigo

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  2. Por isso, sempre que posso, procuro parar...

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